quinta-feira, 22 de maio de 2008

Os donos da verdade

A Justiça da Bahia determinou o recolhimento, em Salvador, de todos os exemplares de um livro escrito pelo padre Jonas Abib, fundador da comunidade católica Canção Nova, ligada à Renovação Carismática. A acusação é de “ofensa contra as formas de espiritismo”. Não me cabe comentar sobre os aspectos da lei 7716 de 1989, posto não ser eu sequer um reles rábula. Mas cabe-me sim, como pensador, ir um pouco mais no cerne.

O imperativo ético deveria ser a base do pensamento dos homens auto-proclamados religiosos, que vivem a pregar - e vivem de pregar - as palavras dos seus deuses e santos. Palavras essas que não cansam de afirmar serem de amor, de fraternidade e uma extensa lista de virtudes. Se fossem praticadas minimamente em nosso mundo, não teríamos um décimo das barbáries que vemos por aí.

Ocorre que ao invés das belas virtudes acima, a pregação proselitista é recheada de preconceito e soberba. O septuagenário Pe. Jonas, a quem tive oportunidade de conhecer na década de 80, é uma pessoa visivelmente carismática no que tange a comunicação interpessoal. Pena que não se possa dizer o mesmo de sua reflexão pseudo-teológica. Com seu sorriso fácil e belas palavras engatilhadas, há coisa de três décadas Jonas Abib capitaneou a origem do que seria um dos mais fervorosos movimentos contemporâneos dentro do Catolicismo: a Renovação Carismática Católica.

Inspirada no neo-pentecostalismo protestante estadunidense da década de 60, a RCC enxertou no seio do catolicismo ritos e práticas até então estranhos aos católicos, tais como transes espirituais, oração em línguas estranhas, curas por imposição da mãos e outras coisas baseadas na epístola de Paulo aos fiéis de Corinto, quando o apóstolo explanou sobre os dons espirituais concedidos pelo deus dele. Como tempero, a RCC incentivou a leitura da bíblia cristã, dentro de uma perspectiva muito particular de interpretação self-made, tão assistemática quanto intimista.

Se a RCC teve algum mérito em si, terá sido o de possibilitar que os leigos desenvolvessem um sentimento de acesso ao divino de forma mais democrática e menos mediada. Nas noções pregadas por eles, os fiéis têm acesso a diferentes manifestações divinas, sem a mediação da hierarquia clerical. Embora pareça uma grande ruptura de paradigma, essa democratização teve seu lado estratégico, pois deu sustentabilidade e credibilidade ao movimento entre os leigos. Vale dizer que a RCC foi muito rejeitada e perseguida pela imensa maioria dos clérigos, sobretudo pelos bispos, resultando até em casos de apostasia e constituição de seitas por parte dos mais exacerbados. Mas gradualmente, através de uma estratégia de médio prazo, muitos dos jovenzinhos aderentes à RCC foram sendo ordenados padres e então com esses neo-padres, o movimento passou a contar com apoio clerical significativo. Destaque-se o padre-dançarino e ator Marcelo Rossi. O pioneiro Pe. Abib já não estava mais só.

Nos dias de hoje a RCC conseguiu firmar-se como um pequeno império à parte da hierarquia católica. Com ou sem permissão episcopal, a entidade passou a ser holding de algumas dezenas de empresas rentáveis que incluem editoras, gravadoras, estações de rádio e até uma emissora de TV, cuja sede situa-se na cidade de Cachoeira Paulista. É impressionante o adesismo massivo de fiéis, inclusive de classes média e alta. Sabe-se que muitos deles entregam o controle dos seus negócios para procuradores da entidade, engrossando os canais de receita financeira do movimento. Uma visita a uma espécie de "vila-comunidade" que a RCC mantém em Cachoeira, pode revelar coisas intrigantes como o fato de profissionais liberais, industriais e comerciantes abandonarem tudo (nas mãos de procuradores da RCC, claro) em troca de viverem na tal comunidade, andando de chinelos de dedo (nada contra estes) e esboçando um ar entorpecido de felicidade pela atitude escolhida. É tentador traçar um paralelo com o concorrente Edir Macedo, nas suas "correntes dos empresários", pois as práticas de despojo e expropriação voluntária são muito semelhantes.

Seria muito ingênuo ignorar que por trás dos umbrais de fé da RCC há uma elite controladora, intelectualmente dotada e bem articulada, como por exemplo o administrador, marqueteiro, compositor e cantor Antônio Kater, autor de análises teo-mercadológicas como: "Jesus pegou o mesmo produto (...) e reposicionou o mercado". Nenhum movimento nasce, cresce e enriquece devido ao reconhecimento divino, como podem alardear seus mentores. A gênese e dinâmica das instituições já foi dissecada por Berger em "A Construção Social da Realidade". Qualquer concessão ao discurso divinista configura-se em uma falácia de premissas e ocultação dos mecanismos materiais da expansão da RCC. Tire-se da RCC os seus mentores, seus escritórios, suas contas bancárias e seus negócios e ver-se-á que o espírito divino não lhes será suficiente para manter o que fora construído.

Contudo estamos no mundo dos negócios. Sem questionarmos as premissas do capital, não há como analisarmos os empreendimentos religiosos. Como quaisquer outras aziendas, os negócios da fé vendem produtos e serviços. Compra quem quer. Apenas que para as coisas do âmbito sobrenatural não há nada que possa ser reclamado com base no Código de Defesa do Consumidor. Se os legisladores se despissem da hipocrisia que permeia a elaboração de algumas leis, os negócios religiosos poderiam ser melhor regulamentados, em vez de correrem soltos e sem tributação, como praticamente ocorre.

A parte mais descarada desses movimentos religiosos quando se institucionalizam é a forma com que vão abandonando o caráter virtuoso e caridoso pregado originalmente, para assumir sua posição sobre a fé alheia: a intolerância. É nesse veio que o livro do senhor Abib cava seu quinhão ao afirmar coisa como: "O demônio (...) hoje se esconde nos rituais e nas práticas do espiritismo, da umbanda, do candomblé". Nada no campo da literatura religiosa pode ser mais podre e preconceituoso do que afirmar coisas desse gênero.

O mais intrigante é que grande parte da literatura proselitista gasta páginas e laudas não para enaltecer as virtudes da própria religião ou seita, senão para acusar, incriminar e satanizar a alheia. É como se tivessem chegado ao limiar da capacidade de cooptação dos não-religiosos e o seu crescimento dependesse tão somente da destruição das manifestações concorrentes. Nesse estágio, parte-se fácil para o tudo ou nada valendo o tudo, incluindo a demonização do outro. Lembra aqueles torneios ilegais de luta, nos quais a única norma é submeter o adversário até o abate.

Tão medíocre quanto vergonhoso é lançar mão de expedientes desrespeitosos, quando o objeto imediato é o ataque à religião alheia, mediando interesses inconfessáveis de grupos particulares. Se eu fosse kardecista, umbandista ou candomblecista iria sim às vias judiciais contra o arremedo de livro do padre.

No mais, sou solidário a todos que se sentiram ofendidos com as prevaricações da pretensa obra teológica. O direito de um termina nas fronteiras do respeito ao direito alheio, que inclui manifestação filosófica, cultural e credo. Tudo o mais é arrogância e prepotência, indignas do que se poderia entender como fé sincera. A intolerância é hipócrita por si só.

2 comentários:

JRP disse...

Mas tio chavier...
Espiritismo, umbanda, candomblé e congêneres TAMBÉM são picaretagens!

Ora, o senhor defende bandidos de um lado contra o ataque de um bandido maior?

Sinal que o senhor está sendo tendencioso ou que leva alguma vantagem de uma das partes atingidas.

E não me venha com churumelas sobre ética, legalidade e justiça que religião é um câncer.
Ninguém em sã consciência defende câncer, a não ser que ganhe alguma coisa com ele, não é mesmo?

Ah, sim, sabe o que alimenta o câncer?
A fé.

Dá um upgrade nas suas filosofias aí, homem!

Follow the money!

Tio Xavier™ 4.5 Plus disse...

Caro camarada blogueiro:

Não defenderei JAMAIS nenhuma religião em si. Se o homem precisa religar-se com algo há de ser consigo mesmo e com a Natureza.

Porém defendo até meu último argumento o direito de cada ser humano praticar a religião que quiser, dentro do respeito ao semelhante.