domingo, 16 de maio de 2010

Crianças invisíveis?

Crianças invisíveis? Ou sociedade cegada?

Ontem à noite fui prestigiar alguns shows da Virada Cultural SP. A propósito do evento, aconselho aos que nunca foram a procurar com antecedência informações no próximo ano. É uma oportunidade sui generis de assistir aos espetáculos mais diversos, que vão do punk rock à música sacra, a poucos passos de distância. Fica aqui o meu registro honroso para os velhinhos remanescentes da banda cubana Buena Vista. Os velhinhos mostraram uma forma invejável com performance musical de música latina da mais alta qualidade.

* * *

Mas meu olhar de pensador não se limitou à festa. Tendo ido de transporte público, os primeiros locais por onde passei à pé, a caminho da praça Júlio Prestes, foram as travessas do complexo conhecido como Cracolândia. Meu olfato indefectível logo indicou o uso generalizado de crack, mal chegada a noite. Ao passar pela rua Mauá, pude ver crianças e pré-adolescentes literalmente jogados sob marquises, onde uns cheiravam cola em sacos plásticos e outros pitavam seus cachimbos com a droga mortífera. Senti-me um impotente ao ver algumas zanzando atônitas e fora de si, como zumbis. Seus corpos já semimortos eram animados apenas pelos espíritos malignos da fumaça que os cachimbos exalavam. Seus olhos sem brilho procuravam qualquer coisa que pudessem roubar, inclusive de mim. Em meio à paisagem que mesclava lixo, ratos, prédios deteriorados e essas crianças abandonadas ao próprio azar, tudo era triste e em tons de cinza. Que raio de sociedade é esta que mantemos, que deixa à míngua seus filhos, a ponto de sentirmos medo deles?

Após juntar-me a alguns amigos no show do Buena Vista, findo este, fomos bater pernas até o Vale do Anhangabaú. Evitamos as travessas menores da Cracolândia por questões de segurança. Tagarelávamos e ríamos matando as saudades mas, lá pelo Largo do Paissandu, vi um pequeno grupo de crianças negras catando latinhas de alumínio e colocando-as em sacos. Provavelmente venderiam-nas a um ferro-velho. Por sorte ou azar social, maus cidadãos que bebiam nos arredores jogavam-nas sem cerimônia pelo chão. Num mundo onde a desgraça e a benesse se misturam, pensei: e se não houvessem cidadãos imundos a jogar as latas, seria melhor? E os moleques coletariam o quê? É difícil chegar a uma boa conclusão em um cenário desses. Enquanto isso, defronte a igreja da praça, a estátua da Mãe-Preta apenas olhava seus filhos largados, sem nada poder fazer.

Por fim, quando decidimos jantar em um shopping no Viaduto do Chá, vi um minicarro de coleta de lixo, desses elétricos, passando com o motorista e um coletor. Do nada surgiram dois meninos bem miúdos, descalços, mal-agasalhados e sujos, mas ainda saudáveis o suficiente para correr. Perseguiam o carro, gargalhando como só eles. Ao alcançarem o veículo, atiraram-se na caçamba, agarrando-se como puderam. Naquele único parque de diversões possível a eles, seguiram de carona furtiva, sob as vistas grossas dos funcionários da limpeza. Essa é a lembrança que mais mareja meus olhos enquanto escrevo. Lembrei-me na hora da cena de que eles, acima de tudo, são crianças. Vi neles o desejo de felicidade marota e pueril, o desejo de brincar, de aprontar peripécias e de simplesmente terem uma infância, coisa que lhes é subtraída diariamente.

Se ninguém ou o Estado abrigarem a esses dois, logo estarão em companhia daquela dezena de outros da Cracolândia. Ou serão explorados sexualmente por adultos degenerados. Mas o pior de tudo é que já estarão sem o espírito de criança, que lhes terá sido arrebatado. Seus corpos estarão animados e movidos apenas pelos espíritos demoníacos do crack, fornecido também por adultos degenerados. Não mais correrão, mas arrastarão os pés com olhos esbugalhados a procurar qualquer coisa roubável de um transeunte. O furto ou roubo será convertido em drogas, com as quais serão liquidados aos poucos. Suas gargalhadas não serão mais ouvidas atrás do carrinho de coleta. Terão se tornado crianças invisíveis, semimortas, graças à cegueira voluntária de nossa sociedade.

Um comentário:

Marisa Bueloni disse...

Caro Marcio: este é o tipo de texto que mais me apaixona e, creio eu, que mais interessa aos leitores. Você foi magistral no seu olhar sobre a cidade grande, corroída em suas entranhas de misérias. Parabéns, belo pensador!
Um forte abraço da sua fã e leitora Marisa Bueloni