terça-feira, 7 de setembro de 2010

Sem memória, sem história



Dia desses uma amiga muito querida me telefonou. Dizia estar na sacada externa da Igreja da Ordem Terceira do Carmo, situada ao lado da praça da Sé, em São Paulo. Lembrou-me das tantas vezes em que nós, nas sacadas internas, confidenciávamos nossas angústias, descobertas e reflexões. Éramos jovens e sonhadores estudantes da faculdade Nossa Senhora da Assunção - ligada à atual UNIFAI - cujo curso noturno, bacharelado em Filosofia e Teologia, funcionava nas salas anexas cedidas.

Naquele tempo saltava-nos aos olhos o requinte do estilo daquela igreja. Construção estilosa, algo entre o barroco e o arcaico, a obra é do séc. XVIII e guarda verdadeiros tesouros históricos. Entre eles uma cripta subterrânea, onde eram sepultados membros notáveis da ordem. Lamentavelmente, entre outras desgraças, no meio do século passado o espaço foi invadido por ladrões, que saquearam os túmulos. Deixaram as ossadas em tal anarquia, de sorte que aquelas que não foram reclamadas por descendentes e herdeiros, foram amontoadas pela zeladoria em uma urna comum, ao centro da cripta. História violada, espalhada e, pior: abandonada por alguns que não foram lá dar conta dos próprios ascendentes. 

De volta ao templo, um enorme afresco se insinuava no teto côncavo, preciosidade esta que foi revelada durante uma das restaurações. E pensar que aquelas estátuas, a linguagem subliminar dos contornos, o próprio piso e, por fim, o afresco no teto haviam sido para gerações uma fonte de mensagens, quase como o que é hoje o cinema. Nesse tipo de arte, nada era fruto do acaso, mas tinha objetivo de transmitir mensagens, com formas e cores meticulosamente pensadas. 

Contudo, essas lembranças que eu trouxe aqui são recheadas de tristeza. Minha amiga, naquele telefonema, me disse que tudo estava novamente despencando. Madeiras carcomidas por cupins, rachaduras e infiltrações por toda parte, de tal modo que o prédio encontrava-se mais uma vez interditado, como fora por tantas vezes. Na narrativa da amiga professora, a relíquia arquitetônica e cultural tombada pelo Estado parecia pedir socorro, em nome de sua própria história, em nome da história dos escravos que a erigiram, em nome da história de cada um que por lá passou, inclusive a dela e a minha. Meus olhos se encheram de lágrimas, inclusive agora quando escrevo isto. Mas o ser humano, entorpecido pelas maravilhas consumíveis do mundo moderno, pouca importância dá à História. E, ao ignorarmos esta, seguimos cambaleantes para lugares e tempos que ninguém sabe onde e como serão. 

Pobre povo que não preserva sua história. Sem passado, vive sem identidade e sem identidade tem futuro incerto.



A Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo foi tombada pelo IPHAN, em 04/12/92.

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