sábado, 29 de maio de 2010

Marcha pela maconha, Evo e os cocaleros

As passeatas recém-realizadas para pleitear a liberação da maconha chamam à pauta um velho assunto, talvez mais antigo do que a própria civilização. De fato é preciso discutir na sociedade a questão dos aluncinógenos e entorpecentes, mas com profundidade, sem simplificações ou generalizações infundadas.

As primeiras formações sociais, clãs e tribos, já utilizavam alucinógenos retirados da natureza, sobretudo para rituais espiritualistas e alívio de dores. No Oriente Médio e na China, por exemplo, a papoula é um cultivo comum de alguns grupos, chegando a ser sua principal fonte econômica. É dela que se extrai, entre outras coisas, o ópio. Entre os indígenas sulamericanos, diversas tribos utilizam o ayahuaska há centenas de gerações, a título de alcançar o êxtase mental e, por suposto, comunicar-se com entidades espirituais. A coca, por sua vez, é um vegetal considerado sagrado desde os Incas, a ponto de denominarem-na K'ócah, sinônimo de "sagrado". Sua utilização remonta à cultura de períodos bem anteriores, sendo sua folha utilizada em chás com efeito analgésico, anestésico e de combate à náusea. No Peru é comum e habitual qualquer hotel ter folhas de coca na recepção, à disposição dos visitantes. Elas são mascadas e minimizam nos visitantes o mal-estar causado pelo estranhamento da baixa pressão atmosférica e baixos índices de oxigênio.

O curioso e semelhante a todos esses vegetais - alucinógenos, entorpecentes ou apenas terapêuticos nos seus contextos de origem - é que o isolamento e potencialização de suas piores propriedades ocorre justamente fora do seu âmbito original. É por volta do século XVII e XVIII na Europa que a maioria dessas plantas torna-se objeto de produção do que se pode chamar de "drogas", no sentido mais amplo da palavra. Não é preciso ser sociólogo para observar que é no capitalismo que a droga vira mercadoria, se multiplica e passa a ser produzida em escala, se tornando um dos grandes problemas do presente. Para ficar em um único exemplo, a coca, natural e sagrada há milênios para os indígenas sulamericanos, vai se transformar na potente cocaína somente nos idos do século XIX pelas mãos de dois alemães - Albert Neiman e Friedrich Gaedecke - e do italiano Paolo Manteguzza. Nas mãos dos europeus e dentro do ambiente capitalista substâncias psicotrópicas são isoladas e tomam a característica de produto. Portanto, se o que eram extratos naturais, xamânicos e ritualísticos se tornaram drogas pesadas, produzidas em escala industrial e causadoras das piores tragédias sociais contemporâneas, não terá sido por culpa dos indígenas. Nem do sindicato dos cocaleros, nem de Evo, por quem não nutro simpatias políticas.

Posteriormente, fingindo vistas grossas à Antropologia e às questões culturais, surge o moralismo pós-moderno ocidental a culpar os cocaleros peruanos, clãs muçulmanas e tribos pelas mazelas das drogas em consumo massivo. Já na metade do século passado, a ONU decretou que mascar a folha da coca era "vício em droga" e os EUA proibiram o comércio internacional da planta. Claro que "uns são mais iguais que os outros", como vaticinou Orwell pois, para a Coca-Cola - emblema do sistema capitalista estadunidense - é mantida até hoje a única concessão para livre importação da folha. Curioso, não é?

Hoje a grande mídia burguesa procura capitalizar antipatia aos povos ameríndios, particularmente, a Evo Morales e ao sindicato dos cocaleros, utilizando-se de acusações no mínimo hipócritas. Recorro a este adjetivo, pois os grandes veículos de comunicação pertencem a círculos de gente abastada e festeira e, quem quer que tenha ido a uma só dessas festas particulares, há de ter presenciado bandejas requintadas transitando com cocaína, drogas sintéticas e cigarros artesanais da "demoníaca"
canabis sativa, tudo circulando livremente, para deleite dos convivas. Sem falar no próprio álcool e no tabaco, este então com suas "mais de 4.000 substâncias cancerígenas", de acordo com o descrito nos maços de cigarro. Mas estas duas drogas são "boas", pois geram altos impostos de modo que, na regra do estado burguês, estão liberadas.

Entendo que o ser humano deva se manter em estado de vigília e consciência, para, alerta, tornar-se capaz de realizar o melhor para si e para a sociedade. Do mesmo modo, que devamos evitar a ingestão de substâncias nocivas à saúde ou que nos subtraiam, ainda que temporariamente, a plena consciência. Rogo a todos que, ao verem seus amigos enfiando os narizes em pó (e pulverizando suas vidas) ou tomado psicotrópicos, não lhes sejam coniventes. Mas tampouco caiam no conto de crucificar àqueles para quem o cultivo e uso da coca, papoula ou da canabis representa, antes de tudo, identidade cultural, religiosidade ou sobrevivência econômica. Há outros culpados pelos males do mundo. Muitos se escondem atrás de posições sociais nobres, gravatas caras, pautas de noticiários e outros anteparos que não posso nem descrever aqui... Que tal problematizar e discutir o assunto sem paixões?

domingo, 16 de maio de 2010

Crianças invisíveis?

Crianças invisíveis? Ou sociedade cegada?

Ontem à noite fui prestigiar alguns shows da Virada Cultural SP. A propósito do evento, aconselho aos que nunca foram a procurar com antecedência informações no próximo ano. É uma oportunidade sui generis de assistir aos espetáculos mais diversos, que vão do punk rock à música sacra, a poucos passos de distância. Fica aqui o meu registro honroso para os velhinhos remanescentes da banda cubana Buena Vista. Os velhinhos mostraram uma forma invejável com performance musical de música latina da mais alta qualidade.

* * *

Mas meu olhar de pensador não se limitou à festa. Tendo ido de transporte público, os primeiros locais por onde passei à pé, a caminho da praça Júlio Prestes, foram as travessas do complexo conhecido como Cracolândia. Meu olfato indefectível logo indicou o uso generalizado de crack, mal chegada a noite. Ao passar pela rua Mauá, pude ver crianças e pré-adolescentes literalmente jogados sob marquises, onde uns cheiravam cola em sacos plásticos e outros pitavam seus cachimbos com a droga mortífera. Senti-me um impotente ao ver algumas zanzando atônitas e fora de si, como zumbis. Seus corpos já semimortos eram animados apenas pelos espíritos malignos da fumaça que os cachimbos exalavam. Seus olhos sem brilho procuravam qualquer coisa que pudessem roubar, inclusive de mim. Em meio à paisagem que mesclava lixo, ratos, prédios deteriorados e essas crianças abandonadas ao próprio azar, tudo era triste e em tons de cinza. Que raio de sociedade é esta que mantemos, que deixa à míngua seus filhos, a ponto de sentirmos medo deles?

Após juntar-me a alguns amigos no show do Buena Vista, findo este, fomos bater pernas até o Vale do Anhangabaú. Evitamos as travessas menores da Cracolândia por questões de segurança. Tagarelávamos e ríamos matando as saudades mas, lá pelo Largo do Paissandu, vi um pequeno grupo de crianças negras catando latinhas de alumínio e colocando-as em sacos. Provavelmente venderiam-nas a um ferro-velho. Por sorte ou azar social, maus cidadãos que bebiam nos arredores jogavam-nas sem cerimônia pelo chão. Num mundo onde a desgraça e a benesse se misturam, pensei: e se não houvessem cidadãos imundos a jogar as latas, seria melhor? E os moleques coletariam o quê? É difícil chegar a uma boa conclusão em um cenário desses. Enquanto isso, defronte a igreja da praça, a estátua da Mãe-Preta apenas olhava seus filhos largados, sem nada poder fazer.

Por fim, quando decidimos jantar em um shopping no Viaduto do Chá, vi um minicarro de coleta de lixo, desses elétricos, passando com o motorista e um coletor. Do nada surgiram dois meninos bem miúdos, descalços, mal-agasalhados e sujos, mas ainda saudáveis o suficiente para correr. Perseguiam o carro, gargalhando como só eles. Ao alcançarem o veículo, atiraram-se na caçamba, agarrando-se como puderam. Naquele único parque de diversões possível a eles, seguiram de carona furtiva, sob as vistas grossas dos funcionários da limpeza. Essa é a lembrança que mais mareja meus olhos enquanto escrevo. Lembrei-me na hora da cena de que eles, acima de tudo, são crianças. Vi neles o desejo de felicidade marota e pueril, o desejo de brincar, de aprontar peripécias e de simplesmente terem uma infância, coisa que lhes é subtraída diariamente.

Se ninguém ou o Estado abrigarem a esses dois, logo estarão em companhia daquela dezena de outros da Cracolândia. Ou serão explorados sexualmente por adultos degenerados. Mas o pior de tudo é que já estarão sem o espírito de criança, que lhes terá sido arrebatado. Seus corpos estarão animados e movidos apenas pelos espíritos demoníacos do crack, fornecido também por adultos degenerados. Não mais correrão, mas arrastarão os pés com olhos esbugalhados a procurar qualquer coisa roubável de um transeunte. O furto ou roubo será convertido em drogas, com as quais serão liquidados aos poucos. Suas gargalhadas não serão mais ouvidas atrás do carrinho de coleta. Terão se tornado crianças invisíveis, semimortas, graças à cegueira voluntária de nossa sociedade.

sábado, 1 de maio de 2010

Tem gente pra tudo

Vejam que linda imagem. Um fã da Suzana Vieira paga esse King-Kong todo para tirar uma foto com ela. Bom proveito, né gente?

Crédito da foto: www.revistaquem.globo.com