sexta-feira, 26 de junho de 2009

Ben

Era 1974. O tio estava no primeiro ano do primário. Magrelo, espevitado e comunicativo, ainda que precocemente, eu estava apaixonado pela Magali. Era uma loirinha de bonitos olhos vivazes, um tanto mais alta que o tio e que aos tenros oito anos, seu corpinho já dava pequenos sinais de seus os hormônios reproduziam-se em velocidade maior do que a média das meninas. Do amor anotado em bilhetes ela tinha prometido um beijo - na boca, claro - o que representava uma transgressão e tanto para a idade e ainda mais para a época.

Sábado à noite, comemoração do aniversário da Magali e óbvio que o menino miúdo de olhos azuis estava lá apaixonado. Festinha na casa da família Império na Vila Romana, bairro simpático e tradicional de Sampa. Na vitrola Philips, o alto-falante situado na tampa vermelha destilava sucessos da época com Elton John, The Chi-Lites e Stevie Wonder entre outros, a maioria concatenados no LP trilha da novela global Uma Rosa Com Amor. Mas na hora das músicas lentas, ocasião em que nos bons tempos se dançava abraçado e com o rosto coladinho, Magali e eu não pensávamos em outra coisa que não fosse dançarmos grudados. A paixãozinha precoce tinha um misto de ingênuo e descoberta. E começa a tal música lenta...
"Ben, the two of us need look no more
We both found what we were looking for
With a friend to call my own
I'll never be alone
And you, my friend will see
You've got a friend in me
(You've got a friend in me)"
A voz que cantava era a de uma criança, ao som de um violão de aço e uma bateria suave, com cadência quase melancólica. Todos sabíamos tratar-se de Michael Jackson. Na época já seria um rapazote, mas os sucessos musicais costumavam durar anos. Ben, na vozinha pueril de Michael, não era uma exceção. Teria durado um bom tempo no topo das paradas de sucesso, de modo que lá estava embalando nosso romance.

A simplicidade dava o tom das coisas nos primórdios dos anos 70. Em um bailinho promovido com uma simples vitrola, sem luzes especiais nem mixers, podia-se esperar que o operador trocasse o disco ou que uma mesma música fosse tocada diversas vezes, repetida ou alternadamente. O grande sucesso daquela noite foi Ben, cuja repetição hoje em dia seria estranha à maioria das pessoas. Após cada uma das execuções de Ben, eu e Magali saíamos sorrateiros e ligeiros para algum lugar escuso aos portões da casa para ensaiar o beijo.

Os corações pequeninos batiam a 150bpm. Os olhinhos brilhavam no escuro. Cada par de mãozinhas se amparava nas do outro suando em bicas. Mas a coragem para inclinar a cabeça não vinha. Acho que a Magali estava mais resolvida com aquilo do que eu. Mas jamais uma dama tomaria a iniciativa. Ela esperava quase cobrando pela aproximação dos meus lábios para o sonhado beijo. E à cada ensaio frustrado, sempre que Michael Jackson voltava a cantar nós corríamos de volta à garagem coberta para dançar e flutuar novamente. Nunca esqueci aquela pele macia nem os longos cabelos dourados no meu rosto me fazendo sonhar. Sonhava que eu já era "grande" e que podíamos sair de mãos dadas, ir ao cinema, ir à lanchonete juntos. Era tudo o que um casalzinho de oito anos conseguia devanear, no auge de um amor puro e ingênuo.

O beijo nunca aconteceu. De ensaio em ensaio, lembro somente da penumbra e da voz fina da Magali dizendo que estava esperando, em meio a um sorriso lindo. A coragem me faltou, mas não a emoção do momento único. A pulsação frenética, o calor das mãos se tocando e os corpinhos magricelos dançando, isso tudo eu nunca esqueci. Assim como se eternizaram nos meus ouvidos os versos na voz de Michael Jackson, que eu nem sabia o que diziam, mas que os bons artistas fazem sentir de forma tão universal que sua poesia e voz atravessam continentes e culturas para tocar os corações apaixonados. Daquele aniversário ficou a doce lembrança da Magali, de quem anos mais tarde eu me despediria ao mudar de bairro para sempre. Mas também e igualmente ficou a delicada voz e o violão de Ben.

Essa é uma das tantas histórias que Michael Jackson nunca soube. Certamente eu e milhões de outras pessoas vivenciamos romances, aventuras e mais tarde noites de glamour dançante ao som estrondoso das discotecas e sob luzes estroboscópicas estonteantes. Por mais três décadas a evolução musical de Michael Jackson, que separou-se e juntou-se com os irmãos algumas vezes, embalaram a vida de tantos jovens sonhadores.

Michael Jackson não nos conheceu, mas certamente sabia de tudo isso. E ontem ao partir depois de uma vida atribulada, às vezes doentia - características quase inerentes à carreira escolhida - o astro pop deixou órfãos duas ou três gerações de fãs. Mas como toda boa obra se eterniza, sua influência musical e coreografias perdurarão por muitos e muitos anos nos mais diversificados artistas.

Vai em paz, Michael. Sua missão terminou e no que diz respeito ao seu trabalho foi pra lá de caprichada. Desculpa pela inevitável fuga de lágrimas e muito obrigado pela presença.

E você, que leu isto até aqui, ligue o som, feche os olhos e apenas ouça.

4 comentários:

Cheshire cat disse...

Ah, tio que lindo... Também fiquei triste. Minha lembrança dele não é tão doce (medo do clipe Thriller), mas sim, foi um grande cara.

Gerson disse...

Tio, o senhor é um Maverick.
Fez um grande sucesso nos anos 70, mas hoje em dia só bebe e faz barulho.
By the way, belo texto.

Tio Xavier™ 4.5 Plus disse...

Só mesmo a sensibilidade paquidérmica do Gerson para me fazer rir a esta hora.

Magalí Imperio disse...

Pois é, Tio Xavier! Tantos anos se passaram e a loirinha de olhos azuis continua com alma de menina... Lindo seu texto, me fez recordar nossa infância, encheu meu coração de saudades. Eu e o Michael agradecemos a homenagem.