segunda-feira, 6 de julho de 2009

Bingo versus o abandono de animais

Anos antes de eu me mudar do bairro de Vila Romana, uma colega de sala - a Marta - avisou na escola que sua cachorrinha sem raça definida havia parido meia-dúzia de filhotes e os doaria assim que desmamassem. Demorou alguns dias para eu convencer meus pais a me deixarem ficar com um. Mas com minha persistência acabaram cedendo. Claro que com aquela lista de condições que se referiam ao zêlo com o animal, incluindo a higiene dele e limpeza da sujeira. Tudo seria a meu cargo, mas eu prometeria qualquer coisa naquela hora, ainda que todos soubéssemos que nem sempre cumpriria.

Como fui o último a confirmar, tive que me resignar com o último deles que era o mais feinho de todos. Era cinzento, de pelagem bagunçada e seu porte indicava que nunca teria uma estatura vistosa. Bingo foi o nome que escolhi.

Os meses foram passando e tal e qual na fábula do pato, o cãozinho feio foi se configurando no mais bonito de toda a ninhada. Como rezava um boato, o suposto pai era um cocker-espanhol que morava na vizinhança. Se for verdade, Bingo herdou suas mais bonitas características que incluiam um farto pêlo dourado, sedoso e esvoaçante. Sua estatura ficou média e a postura garbosa. Como eu nunca fora muito de brincar na rua, Bingo era na prática o meu melhor amigo. Chorava comigo quando eu levava chineladas da minha mãe, fazia papel de monstro nas brincadeiras com meus soldadinhos e miniaturas e me acompanhava em passeios, ocasiões em que me protegia sempre que uma turminha de moleques folgados vinha me importunar.

Depois de quatro anos na Vila Romana, o meu amigo canino chegou a morar conosco em mais duas efêmeras residências no bairro de Vila Maria. Mas eis que chega em casa uma carta muito implorada aos anjos e santos pela minha mãe. A Cohab - Cia Habitacional de São Paulo - ofereceu à minha família um apartamento na Cohab-II, um conjunto imenso no fundão do final, da então última beirada da Zona Leste de São Paulo. O sonho da casa própria iria se concretizar. Mas havia um pequeno problema: em um minúsculo apartamento de dois dormitórios, os cães, além de não terem lugar adequado, eram expressamente proibidos pela arrendatária. Em suma, eu teria que me despedir do meu amigo Bingo, com quem eu convivera em significativa parte das infâncias de ambos.

Por semanas procuramos entre a vasta parentela quem tivesse uma casa com espaço e se dispusesse a adotar um cachorro com seis anos. Bingo era inofensivo, mas a maior das pessoas hesita em arcar com um cão adulto. De conversa em conversa meu pai conseguiu que uma prima, que morava no diametralmente oposto bairro do Jaraguá, ficasse com Bingo. Já o conheciam e aceitaram na família. Avesso às minhas preces para o tempo parar, o destino chegou e trouxe consigo o dia de o levarmos. Um tio que tinha carro nos transportou até a casa da prima. Fomos eu e meu pai, levando Bingo e seus pertences. Eu estava no banco de trás e fiz o trajeto todo abraçado a ele, ensopando-o com o sofrido choro da separação. Não era um cão. Era antes parte de minha vivência, da qual eu me despedia naquele momento. Depois de ambientado na casa da prima, almoçamos e chegou a hora de partirmos. Dói lembrar essa cena e não sei por mais quantos dias ou semanas eu chorei escondido pela saudade do cãozinho a quem eu tinha dado leite, comida, carinho e amizade. Do Bingo eu tinha recebido fidelidade, afeto e companhia infalíveis. Por causa da distância, agravada pela falta de um automóvel e pela condução precária, revi meu amigo por mais poucas vezes depois disso. Até que anos mais tarde soube que ele morrera.

Hoje recordando-me do meu amigo Bingo não me conformo que a Prefeitura de São Paulo tenha que fazer uma campanha de conscientização para que não se abandone animais. Que raio de animal é o bicho-homem para ser capaz de expulsar do convívio familiar um animal domesticado e abandoná-lo indefeso em beiras de estrada, bairros desconhecidos e terrenos baldios? A racionalidade atribuída como exclusiva do homem, antes de ser sua melhor qualidade, talvez seja seu pior defeito. A razão, nesse caso, talvez seja o atributo que permite a um humano contabilizar egoisticamente o que julga oportuno para si, ignorando, entre outras coisas o olhar terno e fiel de um animal de estimação.

Me preocupa conviver com uma comunidade humana tão consumista e pragmática a ponto de um animalzinho de convívio não lhe despertar amor de verdade, com zelo e responsabilidade. Mas esses são os tais humanos e quanto mais os conheço mais me decepciono com eles. Sempre suspeitei que um ser humano que não sinta compaixão por um animal seja igualmente incapaz de senti-la pelo seu semelhante.

Fica aqui meu recado: não abandone nunca seu animal de estimação. Ao menos consiga outro lar para ele. Faça isso por você mesmo. Caso seja incapaz de compreender, lamento muito por você.

Cartaz da campanha contra o abandono de animais.

3 comentários:

Bizarro disse...

Pô, Tio, esta história me fez sentir igual o cara do Indiana Jones, que o outro sujeito bota a mão dentro do peito e arranca o coração ainda batendo.

marcia disse...

adoro teu blog, fico feliz que na cidade de sao paulo as coisas estao melhores que em RG no RS, onde ninguem ainda se arremangou para incluir nas leis municipais as campanhas de castraçao de femeas e uma fiscalização mais rigorosa na posse responsável

Georgia disse...

Quando adoto, geralmente escolho o mais feio da ninhada! Morro de pena, pensando que se eu nao pega-lo, ninguem mais vai querer.

Golpe baixo esse cartaz da prefeitura de Sao Paulo, me fez chorar logo de manha cedo... A verdade eh que esse tipo de cartaz choca so quem JA tem estima pelos bichinhos e ja age com responsabilidade, entao sofremos a toa. Os criminosos, aqueles que afogam gatinhos em sacos plasticos jogados no rio, esses nao tem coracao nem sentimento nenhum, olham pra esse cartaz e dao risada.