segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Epifania às avessas

Não sou apóstata por profissão, nem tenho pretensões de sê-lo. Penso cada um deva dar-se a crer ou descrer no que quer que tenha escolhido. Ou pelo que "seja escolhido", como podem preferir alguns fiéis mais fervorosos. Observo com distanciamento às interpretações mistificadas que as pessoas crentes fazem dos acontecimentos banais do cotidiano. Nisso reside a fé: em observar nos acontecimentos tidos como comuns, as tais epifanias, experiências de fé, manifestações do divino e por aí vai. Cheguei a escrever um artigo na pós-graduação a esse respeito, descendo ao lugar que entendo como devido, de que a fé não é mais do que a real força motriz que faz ao fiel ver o sobrenatural no natural e não o contrário. Qualquer hora posso procurá-lo e postar aqui, para os que tiverem saco de ler.

Minha antiepifania, se posso usar o neologismo, é, assim como as epifanias crentes, também baseada em um fato crucial de minha vida. Me fez resolver a tomar um entre dois caminhos: ou entender que existe um Deus extremamente sarcástico ou que, de fato, não existe e eu devesse parar de procurar o extraordinário, contentando-me com minha vidinha medíocre de ser humano no meu lugar. Foi esta a minha opção, embora eu tenha estudado Filosofia e Teologia por cinco anos, em dois institutos católicos e tenha tido um período de vida de fé sincera.

Eu estava pelos meus 27 ou 28 anos quando nasceu o segundo filho de meu primeiro casamento. Eduardo Augusto. Esperado com ansiedade, como haveria de ser a um filho desejado, Eduardo nasceu na cidade de Sorocaba, sob circunstâncias absolutamente tranquilas. Atendida em tempo em um hospital local, pouco tempo depois da internação a parturiente dava à luz o garoto, para minha alegria. De lá, assim que dada a alta fomos para casa com o pequerrucho para quem até os cães doberman da casa fizeram festinha ao serem apresentados. Berço pronto, enxoval idem, Eduardo ganhava peso e tinha as rotinas normais de qualquer criança saudável.

Até que numa noite o pequeno começa a chorar desesperadamente e a arder de febre. Profiláticos de emergência dados, corremos para o hospital para saber do que se tratava. Não me perguntem o que fora, mas o médico não escondeu a cara de desesperado ao me solicitar internação imediata. UTI. Disse que alguma infecção havia tomado conta dele, num piscar de olhos e que a reversão do quadro não se daria sem sequelas.

Pois bem, com o que me restava de fé, nos três dias que se seguiram, tudo o que eu não tinha era orgulho próprio e mais de uma vez entrei em uma igreja em silêncio e sozinho para, ajoelhado, implorar para que Deus salvasse meu pequeno tão esperado. Nada prometi, como nunca cri em barganhas e comércio com Deus, pois penso que não se há de fazer isso. Só supliquei, com as últimas forças e lágrimas que me restavam. Deus não haveria de desamparar a um desesperado. Qual pai não haveria de atender ao pedido de um filho pela saúde de outro filho? Qual? A resposta antiepifânica me veio na terceira manhã, com um telefonema do hospital pedindo meu comparecimento urgente.

Como o leitor já compreendeu, Eduardo havia falecido, sem resistir à avassaladora e fulminante infecção. Lá fui eu, cuidar de féretro de filho, a pior desgraça que há de suceder a um pai ou a uma mãe. No cemitério, já quase sem forças, quando do sepultamento, tomei a pá do funcionário funerário e comecei eu mesmo a dar com as primeiras levas de terra. Um filho. Um sonho que eu mesmo entendi que devia sepultar. E também que devia voltar para minha casa naquele mesmo dia, a despeito das ofertas confortantes de hospedagem feitas por amigos e parentes, alguns dos quais haviam se abalado de São Paulo até lá para me acudir.

E na solidão, cercado por gente, terminei o que se havia de fazer: fui para casa com a mãe do filho perdido, tratar de desmontar berço, encaixotar roupas e dar um fim imediato, mergulhados no luto, como quem sabe que não há outro dia para fazê-lo e não há como fugir da amargura. Nas semanas subsequentes, minha fé que já ia abalada, foi tomando novos contornos. E entendi que não há ninguém olhando por nós. Ou haveria de ser alguém tão sarcástico a olhar do céu, sem ter movido uma palha e após ignorar súplicas de todos os familiares? Alguém dirá que fora desígnios misteriosos de Deus. Bah! Explicações tão pobres e simplistas quanto crer. Que tal acordar?

Caso haja algum deus, por favor, não quero ser apresentado! Prefiro mesmo crer que simplesmente não exista. O que há são somente as mazelas da vida, tão naturais quando as alegrias e vitórias. Uma para cada dia. É só. Simples e objetivo assim.

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