sábado, 17 de março de 2007

Carta ao amigo Joseph Ratzinger

À
SUA SANTIDADE PAPA BENTO XVI

PIAZZA DI SAN PIETRO - VATICANO
ROMA-ITÁLIA

"Se a Eucaristia exprime a irreversibilidade do amor de Deus em Cristo pela sua Igreja, compreende-se por que motivo a mesma implique, relativamente ao sacramento do Matrimônio, aquela indissolubilidade a que todo o amor verdadeiro não pode deixar de aspirar. Por isso, é mais que justificada a atenção pastoral que o Sínodo reservou às dolorosas situações em que se encontram não poucos fiéis que, depois de terem celebrado o sacramento do Matrimônio, se divorciaram e contraíram novas núpcias. Trata-se de um problema pastoral espinhoso e complexo, uma verdadeira praga do ambiente social contemporâneo que vai progressivamente corroendo os próprios ambientes católicos."

(Trecho do documento "Sacramentum Caritatis" recém-publicado pelo Vaticano)
Santidade:

Vossa encíclica sobre o sacramento do amor é deveras bonita. São comoventes as vossas iniciativas, no intuito de melhorar a humanidade e tornar a convivência humana mais justa. Também são notórias e nobres as vossas admoestações, sempre preocupadas com o bem-estar de vosso rebanho, dos demais rebanhos que não são vossos e, penso eu, daqueles que não pertencem a nenhum dos rebanhos identificáveis. Decerto que vós pensais e orais por todos. A propósito, antes de mais nada, permita-me identificar-me como sendo da categoria dos sem-rebanho. Ser pensante que me julgo - contando com vosso perdão - nada mais tenho em semelhança às reses de nenhuma espécie. Embora, como muitos saibam, no passado eu tenha pertencido à vossa instituição de modo engajado e sincero. Mas os estudos da Filosofia, da Teologia, das Ciências Sociais e outras tantas, me tentaram ao pecado capital da soberba. Temo ter me tornado um ser crítico, ácido, arrogante e presunçoso.

Dito isto, neste momento tento esmiuçar os pensamentos e conceitos que permeiam o vosso recente pronunciado doutrinário. Claro que respeitando e partindo de vossas próprias premissas, baseadas na compreensão do Cristo e das palavras a ele atribuídas. Não é fácil para mim, já que vós e vossos auxiliares praticamente deteis o monopólio da inspiração divina e do discernimento da palavra. Por isso, sei que sou imperfeitamente movido pelos meus escassos estudos e pelo meu limitado senso.

Falastes do amor de Cristo em comparação à "... sacramento do Matrimônio, aquela indissolibilidade a que todo amor verdadeiro não pode deixar de aspirar...". Impossível não sentir a precisão dessas palavras. Mas veja, Cardeal, falais de aspiração. Haverá coisa mais imperfeita do que um sentimento humano? Convenhamos, Santidade. Lembrais de que não falais de vós e de vossos pares, privilegiadamente inspirados pelo Criador, mas sim de criaturas dos últimos escalões. Como há de ser possível conseguirmos construir entre cônjuges amor tão perfeito quando aquele supra? Sois servidores hierarquizados do Criador e não tendes a menor idéia de o que é dividir contas a pagar, administrar dinheiro escasso, educar crias, defender a moradia, pagar impostos e outras tantas agrúrias humanas. Se eu puder sugerir uma modificação no vosso documento, acrescentai na frase acima: "..., compreendendo que aspirações não são plenamente estáveis, dentro das limitações humanas". Tudo bem? Ponhais na vossa próxima edição revisada.

Vós também mencionastes que "... atenção pastoral que o Sínodo reservou às dolorosas situações (...) se divorciaram e contraíram novas núpcias" Olha, aí não sei não. Primeiro ajudai-me na memória, porque passei pela faculdade de Teologia há quase duas décadas, mas Sínodo não se refere a bispos? Então explicai uma coisa: há entre vós, bispos ungidos, algum que já tenha sido casado e contraído novas núpcias? Ou pelo menos vos reunistes para ajuizar essas coisas, consultando leigos de vosso rebanho em tal situação? Porque está estranho o uso do adjetivo dolorosas. Não caiu bem no documento não, Santidade. Pelo menos até onde conheci, casais separados e com novos cônjuges estiveram um dia em situação dolorosa. Foi por isso que decidiram ser melhor ficarem longe um do outro.

Permitai-me revelar-vos uma coisa: é horrível fazer votos de amor eterno a alguém e depois descobrirmos o erro. Até nesse ponto o adjetivo relativo à dor se aplica. Mas é comum nas novas núpcias pessoas viverem felizes, amadurecidas pela experiências anteriores, talvez por terem sido mais criteriosas na escolha do segundo nubente. É sério Santidade. Procurai nos salões paroquiais e vereis alguns casos. Ah é. Esse é um segredinho de sacristia: muitos deles continuam gostando de vossa igreja freqüentando-a e servindo-a. Até comungam nas vossas missas. Se não acreditais é porque tendes estado por demais ocupados com os vossos ofícios sagrados. Pode estar faltando a vós um resgate do convívio paroquial. Quereis uma prova?

Quando seu antecessor veio ao meu país foi homenageado por um cantor, de nome Roberto Carlos juntamente com a esposa. Pesquisai nos vossos arquivos eclesiásticos, acerca do estado matrimonial dele. E digo mais: na esmagadora maioria dos casos os vossos padres sabem e levam na boa, vedes? Não hei de citar nomes porque não sou X9 nem tenho dedo de seta, Santidade. Mas juro sobre a Bíblia. Sei lá como Deus vê isso, pois só Vossa Santidade haveis de ter o e-mail, o msn e o celular do Criador. Nem sei se Ele de fato se importa, pois consta que o Santo Filho d'Ele teria dito "não necessitam de médico os que estão sãos, mas sim os que estão enfêrmos" (Lc 5,31). Então, dentro do vosso inspirado veredito de que "Trata-se de um problema pastoral... uma verdadeira praga ... que vai progressivamente corroendo os próprios ambientes católicos" vai ver que eles - os acometidos da praga do segundo casamento - hão de estar certos em freqüentar a vossa igreja e tomar a Eucaristia na missa. Acompanhando vosso inspirado raciocíonio é o que parece.

À mim resta viver à margem de vossa conceituada instituição, mas mais por opção. Não que eu não seja um homem de fé, Santidade. Mas minha fé mudou com o passar dos anos. Desde quando eu decidi abandonar vosso rebanho, ainda no reinado do vosso antecessor, muitas coisas me aconteceram. Do resumo de todas elas, decidi pensar que não sou res para nenhum rebanho. Tive um casamento - realizado somente perante o poder secular - e depois descasei-me. Tivemos dois filhos, dos quais vivo um pouco distante, inclusive por razões geográficas. Na sentença do divórcio a explicação foi aquela padronizada: incompatibilidade de gênios. Essa parte foi mesmo dolorosa, Santidade. O adjetivo se aplica.

Tempos depois conheci outra criatura em semelhante situação à minha, por quem me apaixonei. Decidimos viver juntos, embora não tenhamos comunicado à vossa burocracia eclesiástica, e desta vez nem aos potestados seculares. Fizemos os votos às sós, olhando nos olhos um do outro, e nos consentimos mutuamente. Decidimos conceder-nos uma segunda chance de construir uma vida feliz. Na fusão de vidas, herdei um filho do outro casamento dela. Santidade, eu só não ganho na mega-sena. O rapaz é o filho que todos sonham. Só não vou descrevê-lo a vós, porque foge ao objetivo desta missiva. Mais recentemente, há cinco anos e meio, tivemos em comum uma filha. Minha mulher fez questão de apresentá-la a Deus, mediante o sacramento do batismo em vossa igreja. Não me opús, nem teria razão para tal, grato que sou pelos bons princípios que aprendi de vossa sagrada instituição.

Não tivemos entraves decorrentes de nossa situação irregular. Os padres daqui da periferia são gente boa e parecem não esquentar muito a cabeça com vossas inspiradas encíclicas e regras canônicas. Para mim tanto faz. Independente das opções religiosas ou laicas que meus quatro filhos venham a fazer, só pretendo que sejam seres críticos, conscientes, pensantes e sobretudo caridosos. Sacramentvm Caritatis, não é papa? Portanto eu já aviso a vós que é bem provável que a caçula seja a menos propensa a se curvar diante de vossa conceituada hierarquia. De genética ovina eu e ela não parecemos ter nada. E também porque vós insistis em manter-vos na mais anacrônica estrutura monárquica da qual se tem notícia. Mas até lá, pode ser que tenhais mudado, embora eu ache difícil. Poder envolve muita gente, estruturas e essas coisas que vossos leigos e também nós laicos não entendemos nada, não é mesmo Santidade?

Ah, eu já ia me esquecendo de contar-vos o mais importante, pois tenho certo de que ficareis contentes em saber. É que hoje vivo feliz, como jamais pensei em sê-lo. Vós não tendes a menor idéia de o que é dormir e acordar com a pessoa a quem amamos, com quem tramamos, conspiramos, nos completamos e o resto não me atreverei a dizer-vos aqui. Minha atual companheira é minha face feminina e lá se vão dez anos de vida em comum. Todos os dias sou tomado por um sentimento adorável, ao olhar para os olhos e o sorriso dela. Não há nada de doloroso não, Santidade. Arrisco-me à heresia para dizer-vos que sentimos a presença de Deus um no outro. Alguém há de ter mentido para vós. É uma pena que não tenhais acesso à experiência de conjunção de vida como a nossa. Portanto, corrigis também essa parte do texto, que tá pegando muito mal. Fique também para a vossa próxima edição revisada.

Respeitosas saudações.

Tio Xavier

Um comentário:

Unknown disse...

Sua Santidade não sabe nada de amor...
Vou mandar teu comentário pro Vaticano. Algué haverá de, pelo menos sorrir de ladinho, ao ler teus comentários.
Beijos.