quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Uma fatalidade com causa

A complexidade crescente do mundo e a frenetização das ações das pessoas são fatores capazes de neutralizar as ações pensadas e ponderadas, substituindo-as por um agir robotizado e cheio de falhas, sem o nosso diferencial que é o senso, o agir com sentido.

A cidade grande - floresta de hoje - é praticamente desprovidas de árvores e animais selvagens. Contudo é populada por outros perigos tão estressantes quanto eram no tempo em que vivíamos em grupos pequenos e habitávamos cavernas. Só que naqueles tempos, sem o trabalho sistemático, o homem conseguia ter um ócio posterior às situações de perigo, o que o recompunha. Hoje o estresse é ininterrupto e as atenções exigidas são múltiplas, muito além de nossa capacidade de dar foco com qualidade sobre alguma delas. São tempos agitados em que nós mesmos nos enveredamos em prol de algo que não sabemos dizer o quê. Talvez um bem-estar futuro, um tanto que incerto. Ou tudo isso é apenas a luta por sobreviver na selva moderna e seus perigos contemporâneos, talvez muito piores que os de outrora.

E foi assim que, involuntária e infortuniamente, uma jovem mãe aqui em Sampa saiu para trabalhar e, num súbito de mudança de trajeto, ao deixar a filha mais velha primeiro na escola esqueceu no carro a recém-nascida de seis meses, indo trabalhar. A pobre pequena foi abandonada na estufa em que se transforma um veículo fechado sob sol de 30ºC. A mãe só foi dar conta do ocorrido após horas, quando já era tarde e a fatalidade já havia se dado. O pai, acionado logo após a descoberta, abalou-se da universidade onde trabalha e mais adiante foi ter conta do alcance da desgraça familiar. Que trauma e culpa não lhes perseguirão pelo resto de suas vidas? Se eu fosse crente faria preces às dezenas pedindo que esse casal consiga conduzir-se após o ocorrido. Me resta torcer e talvez oferecer algum apoio, posto o pai ser pessoa do convívio diário de minha esposa.

O que está por trás desses lapsos, bugs cerebrais ou seja lá como os chamemos é o que a iluminada Monja Coen chama de "mente em piloto automático". Essa é a bandida do nosso alerta real, que nos rouba a capacidade de operar informações, de analisarmos com serenidade e tomarmos aquelas que nos parecerem as decisões mais adequadas. Reféns de nossas mentes enganosas, que fingem pensar, tornamo-nos autômatos. A rotina frenética e sem pausas é que nos substitui o papel de pensar e, assim, passamos ao papel de máquinas operatrizes, que seguem instruções programadas sem questionar a nenhuma delas. O mundo de hoje é um celeiro de mentes lesadas e conturbadas, que já não conseguem ponderar sobre as coisas e ocorrências. Um fazer-o-que-tem-que-ser-feito, seja lá o que isso signifique, toma o lugar do melhor de nossas faculdades mentais e - por que não dizer? - espirituais, no mais amplo sentido desta palavra.

É o espírito que nos faz presente, possibilitando que enxerguemos nuances das situações aparentemente cotidianas mas que, de fato, são distintas sempre e a cada segundo. Só que deixamos de percebê-las em profundidade. O "piloto-automático" é um estado de semi-torpidez que, qual um narcótico entorpecente, nos tira do melhor senso e faz-nos realizar as coisas sem questionar, sem dar nosso olhar que vê. Enxergamos mas não vemos, ouvimos mas não escutamos, somos tocados mas não sentimos.

Como sempre digo, a vida é feita de escolhas. Ao objetarmos algo através de escolhas irrefletidas nos tornamos o objeto dela. Nos "coisificamos" perante aquilo que escolhemos. Quanto menos crítica e presente tenha sido a ação seletiva, mais "coisa dela" nos tornamos. E, por fim, passamos nós a sermos os escolhidos e não mais os escolhedores. Assim sobretudo é a vida na cidade grande. "Escolhemos" trabalhar, estudar, ir à academia, depois correr para o curso de idiomas, ao supermercado, à oficina mecânica, ao médico e até ao que pensamos ser um lazer, mas geralmente não é senão um consumo de tempo a mais, sem a premissa da presença de espírito que caracterizaria um bom lazer. O agravante é que, em algum momento, jogamos fora o mapa da volta. Por isso não me espanta que pais e mães esqueçam filhos na escola, no carro, no supermercado. Antes de causa ou culpabilidade são mera consequência. Consequência dessas tantas escolhas irrefletidas que se apoderam de nós.

Tentar viver de uma maneira mais zen é a única salvação para a balbúrdia de vida na qual nos enfiamos em algum momento. Por isso recomendo a todos chutar o balde vez ou outra. Largar o carro em casa e andar à pé ou de transporte público. Enforcar uma aula, faltar à academia, visitar um amigo que não vemos há tempo, nos banharmos com a mão não-dominante ou comer idem, assistir a filmes diferentes, ouvir músicas diferentes, dizer "não" a algumas "obrigações", ainda que isso seja de certo modo custoso ou danoso. Em suma, desligar o maldito "piloto automático" que tira de nossas mãos as rédeas de nossas próprias vidas. Do contrário, deixaremos de "ser" para apenas "estar".

Que esse pobre pai e essa pobre mãe, que devem estar com uma culpa de toneladas sobre as consciências, recobrem de fato suas próprias conciências e consigam superar-se da tragédia. É meu sincero desejo.

Um comentário:

Unknown disse...

De modo geral o fazer sempre igual e o fazer sempre diferente soam como obrigação. E em sendo uma obrigação, logo me contraria.
Realmente, o oscilar é o sensato, supondo que tal coisa exista.
Gostei do blogger!