terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Quem é sua razão? Do quê?

Com frequência lemos e ouvimos pessoas dizendo algo como "fulano(a) é minha razão de viver". À parte a intencionalidade romântica de demonstrar amor desmedido, é curioso que alguém ou algo cuja existência lhe esteja fora de seu domínio real, se lhe represente algo tão forte e tão profundo quanto a própria razão de viver. Para mim, honestamente, a expressão acima reflete algo bem estúpido, seja o objeto dessa paixão uma pessoa, um time, um partido político, uma banda pop, um animal de estimação ou até um nobre trabalho social. Não importa.

Isso me remete a uma questão que me foi muito bem colocada por uma amiga a quem admiro e me reporto com assiduidade. Psicóloga atuante, ela me reposicionou de modo terminológico razão, motivação e incentivo. Até então eu, imbuído do senso comum, usava inadvertida e indistintamente os termos, sobretudo para tratar de políticas empresariais e acadêmicas com o fim de conduzir pessoas à ação. Nada mais equivocado, aprendi.

Segundo minha intelectual amiga, razão, seria o pináculo último de uma pessoa para algo mais elevado, como o próprio viver. Não se trata da razão no sentido iluminista de racionalidade, ratio. Simplificando um bocado, razão seria uma elaboração complexa, composta de várias convicções, mais ou menos conscientes, que vão se construindo arraigando, se entrelaçando e interagindo dentro da mente humana. Poderíamos na linguagem religiosa traduzir a razão como alma, a anima que nos mantém em pé e vivos.

Já a motivação seria a resultante da razão, mas que nos coloca em movimento. Ela seria o que faz uma pessoa a embrenhar-se por determinado caminho, carreira ou empreitada. Por isso, só se encontra motivação dentro de si, no fundo da sua alma, no âmago da razão.

Por fim, fora do ser, é que pode existir o incentivo. É somente nele que conseguimos atuar quando tratamos com outras pessoas. Desta feita só conseguimos ter uma noção mais assertiva de com o quê podemos incentivar uma pessoa, quando passamos a conhecer e compreender suas motivações. Muitas pessoas fazem aparentemente as mesmas coisas: podem trabalhar ou estudar, na mesma empresa ou no mesmo curso. Podem estar unidas, dormindo na mesma cama, sob o mesmo teto, e no entanto ter motivações diferentes. Decorre disso que tentar incentivá-las da mesma maneira - no trabalho, por exemplo - pode ter efeitos distintos. Uma pode trabalhar movida por vaidade, outra movida por sede de poder, outra movida pelo dinheiro. À primeira poder-se-á ofertar reconhecimento público, à segunda possibilidades de crescimento hierárquico e à última recompensa financeira, caso se pretenda empenho dessas três.

O que mais me intriga em pessoas que projetam - aparentemente - suas motivações em outrem ou em algo, é que o fazem sem a menor noção de que seus nomeados sustentáculos podem desabar a qualquer tempo e, com eles, elas mesmas poderão amargar sensações depressivas. Quem faz isso, abdica de procurar suas razões dentro seu cofre interior, muito mais seguro. Ao não buscar o autoconhecimento, abre mão de encontrar bases mais consistentes para sua vida e, preferindo projetá-las, arrisca-se no pedregoso e instável terreno do apelo exterior, do mundo das aparências, como os semi-cegos da caverna de Platão. Prefere antes as sombras às imagens verdadeiras, tanto de si como das coisas e dos outros.

No fundo, essas pessoas que dizem "fulano(a) é minha razão de viver", adotam como alimento o feedback alheio ou a sensação ilusória que o objeto lhe proporciona, tal como um narcótico. Tomam o que o outro ou o objeto lhe propiciam e vinculam artificialmente seus motivos a isso. Nada mais arriscado e danoso. A mente humana é um celeiro de enganos. Aquilo do qual se aceita depender psiquicamente pode ser sua ruína, até mesmo pela possibilidade de ter origem em más formações conceituais ou distorções relacionais estabelecidas na infância. Aceitando tão somente esse retorno como alimento, nutre apenas suas próprias distorções e aprofunda aquilo que o conduzirá ao assassinato progressivo de sua personalidade verdadeira, de sua id-entidade.

Pelo amor de São Freud, recomendo a você que lê isto: jamais pense ou diga que alguém ou algo é a razão do seu viver. Ou, fazendo isso, se arrisque no beiral do penhasco onde há de precipitar seu ser. Os suicidas que o digam. Quem sabe, através de algum médium, caso isso seja possível.

2 comentários:

Andréia disse...

Márcio...

Muito obrigada pelas gentis referências à minha pessoa.
Realmente essa questão de:"....é minha razão de viver" é muito perigosa, a meu ver.
Pois sugere (incoscientemente) transferência de responsabilidade.
Atribuir este "poder" a alguém, é, também, colocar nas mãos dele as possibilidades de realização e desenvolvimento (ou não).
Considerar que somos seres de relação e não somos autosuficientes nos enriquece como seres humanos, mas já pensou ser responsável pela vida de alguém além de nós mesmos???
Na minha opinião, o grande desafio é: cada um conhecer e assumir quem é,o que deseja e necessita.Saber que é responsável por isto.E que não é possível sozinho!
"Viver com" com alguém é diferente de depender de alguém para sentir-se vivo.

Anônimo disse...

Marcio, em primeiro lugar, feliz ano novo, tá? Em segundo lugar, essa história de "razão de viver" é mesmo muito delicada. Envolve aspectos profundos da vida afetiva e emocional e creio que uma pessoa equilibrada nem vive em função disso. Quem é bem resolvido vive sem procurar tais "razões". A vida - seu fascínio e seu mistério - já seria intrinsecamente, uma grande razão. Abraços.