quinta-feira, 25 de janeiro de 2007

Comemorar?

Diferente do post sobre o aniversário de Sampa que fiz ano passado, neste ano um realismo pesaroso ronda minha mente. Eu já protagonizei o filho arrependido da parábola cristã. Isso ocorreu no início da década passada depois de tentar a vida em uma cidade do interior. Sampa me recebeu com ressalvas, mas depois me acertei com ela, ficamos de bem novamente e saboreei de cada oportunidade do cotidiano que ela oferece. Saí sem grana e desfrutei de atrações gratuitas, saí com o bolso cheio e me diverti em baladinhas e bares caros, já tive o carro roubado à mão armada, outro furtado em minha ausência, já arranjei empregos, namoradas - atividade que cessou na atual companheira - , vi temporais e a garagem do prédio encher-se de água naufragando meu fusca, mudei de casa, abri meu próprio escritório, reencontrei amigos antigos, perdi outros... isso não tem fim e renovo diariamente. Morar em Sampa é algo único.

Mas minha reflexão de hoje me remete a um recém-conhecido na cidade. O buraco da obra do metrô, filho mais novo desta metrópole. Tudo bem que eu também estou de saco cheio dele. Até mesmo minha caçula um dia desses desabafou, ao ver a milésima chamada de noticiário a respeito dele. Mas eu insisto que há mais para entender naquele buraco.

O que está por baixo daquele buraco além do entulho e - tomara que não - mais algum cadáver? Me perdôe pelo comentário mórbido, mas o buraco é o símbolo de nossa cova comum. Do pó vieste, ao pó voltareis, parece ser a voz que vem do fundo da vala. Ou decifra-me ou devoro-te diria o buraco se tivesse a formosura da esfinge egípcia. Mas o buraco é feio, decadente, escuro e úmido. Talvez seja mal-cheiroso também. Acima de tudo, a cratera conta uma história.

A história é de uma metrópole construída por barões do café, que por tanto e quanto tempo deram as cartas no que eles chamam de desenvolvimento. Não reclamarei da falsa pompa de outrora, quando gente bonita rica e bem trajada cruzava o Viaduto do Chá e lindas mansões ostentavam o impressionismo realista dos manda-chuvas. Na verdade nem meus pais viveram essa época (sim, sou um tio jovem). Mas falo de coisas e circunstâncias muito mais próximas de nós.

Falo do fim de um falso milagre econômico feito à custa de poupança de viúvas européias com juros quase simbólicos. Um sonho que morreu definitivamente no início da década de 80 também soterrado, mais tarde pela cratera-panacéia do Plano Cruzado. Falo de um descaso absurdo com os milhões de migrantes que até então foram intencionalmente atraídos para cá. Foram bons porquanto serviram de carregadores de tijolos e limpadores dos quintais das lindas mansões. Com o fim delas e das grandes obras governamentais, passaram à condição de seres errantes ciscando trabalhos temporários e se desqualificando moral e socialmente a cada dia, à cada geração, engolidos pela informalidade e pelos imensos camelódromos controlado por mafiosos ricos.

Falo de serviços antes públicos e reconhecidamente de responsabilidade dos Governos. Nada mais justo já que do sustento da maioria eles tiram as primeiras fatias do toucinho. São escolas podres, postos de saúde simbólicos, policiais mal-remunerados, transportes insuficientes para os fluxos humanos que vão dos bairros-dormitório, como Itaquera, até os suntuosos centros empresariais como a Berrini. Se você morar em um bairro de periferia, já deve estar cansado de saber que nós e nossos familiares são transportados em um serviço autônomo de vans controlado pelo PCC. Cadê a saudosa CMTC? Depois da privatização, foi esse o destino das linhas que os empresários foram rifando para as cooperativas de transporte auto-geridas. Nesse contexto o buraco desabado é somente o resultado de um Estado que se retirou até mesmo da supervisão e fiscalização das obras públicas, num belo exemplo da aplicação da privatização universal e sem critério.

São décadas de rodízio simbólico de partidos e arremedos de gestões populares, mas que se somam e resultam em uma deterioração visível a qualquer um. Enquanto isso a burguesia cafeeira depois de vender suas lindas mansões na Paulista para construtoras de prédios que esconderam os céus, agora ela própria se esconde em condomínios fortificados inclusive em municípios vizinhos, como Barueri. Criam suas fortalezas para passar seus dias imunes à tamanha cagada pseudo-gestora em que insistem prosseguir, pois o importante é levar vantagem em tudo, como profetizou a famigerada propaganda de cigarro.

E a população de Sampa continuará amanhecendo trabalhando e anoitecendo trabalhando. Ao menos enquanto o buraco da obra da deterioração social não se expandir e engolir a tudo. Mas acredite que de certo modo nós todos - tanto os protagonistas quanto os omissos - estamos lá debaixo do soterramento. Nossa cova coletiva, vala comum de nossa morte. Pena que nem os bombeiros nem as cadelas farejadoras parecem nos encontrar.

Ei senhores, onde vão? Voltem aqui!

Um comentário:

JRP disse...

Eu ia achar legal se aquele prédio preto ali, o da construtora Passarelli, fosse tragado pra dentro do buracão!
Tá, tá, eu sei que seria desumano, as pessoas sofreriam, empregos e bla, bla, bla.
Mas eu gosto de destruição.
Gosto mesmo.
Sempre gostei.
E um prédio desabando me faz sorrir.
Precisa ver como fiquei na cena final de Clube da Luta!