quarta-feira, 17 de janeiro de 2007

A Sociologia das Filas

Hoje uma amiga me propiciou um momento de sinapse único e demarcador de uma nova etapa em minha vida. Ela me contou que foi ao Fórum Cível em Sampa e lá havia uma imensa fila para atendimento. Para entender melhor o meu artigo, leia antes AQUI. Mas as histórias possuem alcance muito maior do que as intencionadas pelos seus protagonistas e narradores. E foi lendo a narrativa dela que tive um instante de iluminação, subindo um degrau rumo ao Nirvana. A Sociologia das Filas é um ramo do estudo sociológico que até agora não havia sido explorado por nenhum outro estudioso. E a partir deste post, tio Xavier passará a ser uma referência acadêmica mundial no assunto.

Existe uma razão psicossocial para a existência das filas. Elas vão muito além das motivações aparentes. Entenda: quando você vê uma fila de banco não se trata de uma simples fila de banco. É na verdade um evento social construído pelo inconsciente coletivo das classes populares. Trata-se da oportunidade que o povão, o populacho, o proletariado - ou seja lá como você queira chamar a gentalha - cria para se relacionar, interagir e se reafirmar como sujeito social.

Veja a dona Francisca* do post mencionado no caput deste artigo. É bem possível que, depois de a Red´s ter se mandado da repartição pública, a dona Francisca tenha feito o mesmo. A fila para ela, enquanto terapia, já tinha cumprido sua função. Dona Francisca jamais ouvira falar em Freud e Jung e sequer teria grana para pagar um profissional da Psicologia. Mas o inconciente dela sabia que ela encontraria a Red´s na fila para ouvir as suas lamúrias bostiais. Nada mais. Dona Francisca foi embora aliviada e graças à função terapêutica da fila, conseguirá suportar o cheiro de fossa por mais alguns dias, sem esfaquear o vizinho imundo.

A fila e a afeição que o povo tem por ela remonta a períodos muito antigos da história da humanidade. O que teria sido o Êxodo senão uma grande fila de povão atrás de Moisés? Os hebreus sequer questionavam a escravidão em si e nisso os teólogos da libertação erraram feio. O povo não seguiu o fundador do judaísmo em busca de liberdade até porque a maioria nascera em cativeiro e nunca imaginara outro modo de vida. Seguiu porque Moisés conseguiu formar uma pequena fila. E os hebreus foram atrás dessa fila. A maioria sequer sabia o destino ou quem era o guia. Alguns questionaram e foi depois de muitos dias, por causa da falta de alimento.

Falando em alimento, é só olhar os supermercados. Todos sabem que há carne cortada, selecionada e pesada nas bandejinhas das gôndolas refrigeradas. Mas o povão faz questão de pegar a fila do açougue do mercado. Não é como todos pensam - para obter cortes privilegiados - mas pelo simples ato de fazer parte de uma fila. Senão como explicar que o povão lote os supermercados nos mesmos dias do mês e nos demais encontrarmos os caixas vazios com as operadoras quase dormindo? O argumento do dia do pagamento não cola, já que o povão compra sempre com cartão de crédito e o que vale é o vencimento da fatura. Algumas investigações revelam que o povão se reúne em confrarias secretas, para combinar quando é que vão assediar os locais com filas. Isso explica as oscilações entre vazios e filas quilométricas, de alguns locais.

Mas a fila não é privilégio das classes proletárias. A paixão pela fila conquista gentalha de classes mais abastadas. É só passar diante de uma balada-badalada, para ver que a fila também exerce ali seu papel de formadora de opinião pois em última análise ela indica os lugares in do momento. Você entraria em um restaurante que em pleno domingo não exibisse uma fila na porta? Não minta. Ou você acha que o Famiglia Mancini em Sampa recebe centenas de clientes aos domingos por causa das deliciosas pastas e suculentos molhos? Nada disso. Experimente tirar a fila da porta, que é onde as pessoas bebem, conversam, tomam o sol escaldante e ficam em pé durante horas, para ver quantos fins-de-semana resistirá o hit gastronômico deles.

A fila tem também um apelo religioso. A Eucaristia teria sido - segundo os evangelhos - instituída pelo próprio Jesus. Fora em uma mesa de refeição sentado junto com seus apóstolos e entes mais queridos. No entanto, o cristianismo de massa instituiu a missa com o povão sentado nos bancos. Mas é só o padre anunciar a distribuição da hóstia que o povo mais do que rápido forma uma imensa fila. As igrejas bem que tentaram instituir ministros auxiliares para levar o sacramento até onde o povo ficava sentado, mas não funcionou. O povo ignorava os ministros e insistia na fila. Assim também as romarias e procissões são expressões religiosas da predileção por filas que o povo tem. Aposto uma caixa de cerveja que a maioria dos romeiros não tem a menor idéia de quem é o santo ou a festividade de determinada procissão. Para os romeiros santa é a fila e isto basta.

Por fim, a fila possui sua expressão e faceta lúdico-infantil. As brincadeiras inocentes como balança-caixão e piuí-abacaxi são embriões do que as crianças almejam para a idade adulta: a fila. Mesmo a brincadeira de ciranda cirandinha exprime um simbolismo filosófico sobre a fila. A roda é nesse caso representa uma fila infinita, que submete as crianças a guinadas de trezentos e sessenta graus. As crianças terminam sempre no mesmo lugar, só apenas um pouco mais tontas e risonhas. Isso é importantíssimo na infância, pois as prepara para a vida adulta, de modo que entrem e saiam de filas em repartições e bancos com um pouco mais de humor.

O estágio mais elevado da fila já foi atingido pela humanidade. Ele está expresso pela criação das filas de sentados. São aqueles locais onde você retira um ticket numerado e fica olhando um painel para ver se seu número é chamado. O painel comprova de forma inquestionável que você não é nada mais do que um número. As cadeiras formam um confortável ambiente, que alude aos sofás das salas de visitas onde as pessoas sentam-se para conversar e contar causos. É como se nem existisse fila e todos estivessem em uma grande reunião de amigos. Por isso raramente se vê pessoas reclamando, já que estão confortalmente sentadas e o painel universaliza a espera.

Eu tenho revelações inéditas sobre a relação do cotidiano com as filas. Só para adiantar uma, o movimento Diretas Já foi uma campanha não pelo direito de voto em si, mas pelo direito de fazer filas imensas nos postos de votação. Quem quiser saber mais, pode contratar minha palestra Sociologia das Filas - Muito além de Marx e Engels ou aguardar o lançamento do meu livro. E você poderá fazer fila para receber meu autógrafo, claro.

Na próxima vez que avistar uma fila, não critique o serviço em questão. Pense nos milhares de freqüentadores que se sentem melhor dia-a-dia ao passar pelas filas.

Um comentário:

JRP disse...

No Orkute, colecionamos amigos de mentira e formamos com eles uma fila de gente descinhecida e conhecida, mas todos atrás de nós.
Logo, é uma fila do Ego!
Fila também pode ser de idolatria da imagem alheia, fila do perdão, fila do desespero, fila da porte e, no cemitério, a fila definitiva, todo mundo perfilado, deitadinho, pela eternidade.
Um ao lado do outro.
Desenvolve mais isso!
Há um alto valor paranóico nessa idéia!