quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007

A odisséia da cidadania

Dezembro de 2006:

- Bom dia, moça! O tio precisa renovar a habilitação. É aqui?
- O senhor está com a carteira vencida?
- Sim, veja.
- A do senhor é das velhas que nem têm foto - a jovem gorducha faz questão de me jogar a idade na cara - .
- É o que está aí - disse eu visivelmente desagradado - .
- Então o senhor terá que estar fazendo o CFC ou os exames de defensiva e primeiros socorros.
- E onde diabos é isso?
- O senhor pode estar procurando qualquer CFC no seu local mais próximo e estar se informando.

Eu estava em uma das unidades do Poupa-Tempo, ou "gasta-tempo", como insisto em chamar. Para quem não é de SP explico: São gigantescas unidades de serviço burocrático governamental de múltiplas repartições. Em um só local um cidadão pode tratar assuntos de quase todas as áreas documentais e tributárias. Deve haver similares em outros estados, creio eu. Enfim, uma boa idéia. Mas o fato é que eu ainda estava sem habilitação, dirigindo ilegalmente mas foi por expiração de validade. Nunca acumulei pontos de infração que me suspendessem a CNH. Sou um motorista exemplar.

[/intervalo de alguns dias]

Achei um tal CFC autorizado a ministrar os exames. A atendente bem que tentou me vender um cursinho para eu saber o que havia sido alterado no Código de Trânsito e alguma outra coisa que me faria sentar a bunda por três dias na tal escola e deixar um polpudo cheque, mas rejeitei. Depois me deu como alternativa baixar umas tais apostilas de direção defensiva e não sei mais o quê na internet e rachar de estudar, pagando apenas o exame (R$28). Claro que esta era a alternativa mais barata e topei. Melhor ainda: mais tarde lembrei que a tia darling tinha as tais apostilas as tomei emprestadas. Dias depois fui fazer o famigerado teste no computador do CFC e tive a brilhante, sensacional e invejável avaliação de 90% de acertos. Considerando que sequer olhei as malditas apostilas foi muito bom. Tudo bem, eu confesso: as perguntas eram do tipo "se devemos ligar os limpadores de pára-brisa durante a chuva" ou "acender os faróis à noite" e coisas complexas assim. O importante é que já de posse do certificado e recibo de pagamento retornei semanas depois ao Poupa-Tempo.

[/intervalo de mais alguns dias]

- Olá moça, eu trouxe aqui o certificado. Aqui está minha CNH antiga. E meu RG.
- E as fotos, tio?
- Fotos? Vocês não capturam a imagem das pessoas com câmera digital?
- Não mais senhor. Esse sistema foi suspenso e não sabemos quando volta. A gente escaneia (sic) - tome neologismo digital - a foto que o senhor trouxer.
- Escaneia a foto?
- Sim. E o senhor pode estar tirando lá embaixo no fotógrafo do Poupa-Tempo.
Contrariado saí do atendimento e lá fui tirar as malditas fotos. Fotos digitais, diga-se de passagem. E como o tio não é lá muito fotogênico, é fato que as fotos ficaram horríveis. Bom, mas a máquina só reproduz o que focalizou, fazer o quê? Volto ao atendimento com as fotos.
- Olá moça, eu trouxe aqui o certificado. Aqui está minha CNH antiga. E meu RG. E agora as fotos.
- Xi senhor, esse RG é muito velho.
- Mas está legível e inteiro.
- Sim, mas sua foto está muito apagada. Esse documento é de 1.983 - joga mais uma vez na minha cara - e não identifica mais o senhor.
- Cáspita, mas e aí?
- O senhor vai ter que estar indo na SSP e tirando outro, antes de estar vindo fazer a CNH. Mesmo que não estando pronto, o senhor pode estar dando entrada na CNH só com o protocolo do RG.
- E onde eu faço o RG?
- Na ala B. Lá tem a SSP.
- Obrigado.
...

- Olá moça, eu preciso fazer meu RG.
A robótica responde:
- Certidão de nascimento ou de casamento original e uma cópia, foto 3x4. RG antigo o senhor perdeu? E um comprovante de endereço.
- Veja, eu tenho o RG que dizem estar velho. Não pode ser ele, já que vocês têm o cadastro aí na SSP?
- Por que? O senhor não tem certidão de nascimento original?
- Na verdade até tenho. Mas sou divorciado.
- Certidão de casamento averbada.
- Casseta, mas o cartório é no interior de SP.
- Então o senhor pode estar indo na central dos cartórios e estar pedindo uma segunda via.
- Onde é isso?
- Segundo corredor à direita.
- Obrigado.
...

- Olá moça, eu preciso tirar o RG, pra poder renovar minha CNH. Mas preciso de uma segunda via da minha certidão de casamento com a averbação do divórcio.
- O senhor sabe qual cartório?
- De Jacupiranga do Oeste* .
- Um momento - e fica digitando algo no computador - Aqui diz que nessa cidade tem dois cartórios civis, o senhor sabe qual é?
- O primeiro.
- Aqui estão os dados do cartório para o senhor estar entrando em contato. Se quiser podemos estar pedindo por aqui mesmo. Demora cerca de quize dias. Custa trinta reais, mais as despesas de Correio.
- Não tenho remédio. Peça.
- Qual é a data, livro, página e número da certidão?
- Ahn?
- Precisa desses dados para eles estarem achando lá. No mínimo a data do casamento ou do divórcio.
- Essas datas a gente prefere esquecer, moça. Fala sério. Posso chutar?
- Poder pode, senhor, mas se eles não acharem, depois de quinze dias eles vão estar respondendo que não acharam e vão estar demorando mais quinze para estarem devolvendo seu dinheiro.
Neste momento eu penso em quanto odeio gerundistas. Lembro que já é dezembro, começa a correria do Natal e do Ano-Novo. Tudo só se resolverá em janeiro. Então pra que ficar me esborrachando né?
- Obrigado senhora. Eu volto outro dia.
- De nada.
...

Janeiro de 2007:

Depois de gastar alguns interurbanos e conseguir do cazzo do cartório a mardita da certidão da merd... ah, deixa pra lá.

- Olá moça, eu preciso tirar o RG. Trouxe uma segunda via da minha certidão de casamento com a averbação do divórcio.
- Deixe eu ver. Hum... certo... foto... comprovante de residência... certo... Tudo bem senhor! Agora o senhor vai ao banco com esta senha - e me dá um papel - para estar recolhendo a taxa.
- Onde é o banco?
- Do lado do pavilhão central. Tem uma placa enorme lá.
- Obrigado. Já volto.
...

- Voltei, moça. Aqui está a guia recolhida e os documentos. Tudo aqui.

Pouparei o leitor do ritual de impressões digitais, assinaturas e questionário verbal no qual quase perguntaram quantas relações sexuais eu tenho semanalmente. Mas, antes tarde do que mais tarde. Peguei o protocolo do RG e pude ir ao Detran atualizar a CNH. Simples assim? Não, ainda recolhi outra taxa no banco, fui examinado por um médico e peguei mais umas três filas. Agora são filas de sentados com senha. Tinha até um porta-revistas com exemplares que servem de analgésico pela demora.

Fico pensando que, se é difícil assim para quem tem acesso à informação, sabe engraçar com atendentes, desembolsar taxas e emolumentos, telefonar para outras cidades e pagar antecipadamente por segundas vias de documentos, como será que faz o migrante pobre que veio de Caatinga dos Pelados* no interior da BA, do CE ou do PI e perdeu os documentos no bagageiro do Itapemirim? Ou simplesmente não faz?

CNH, RG, CPF, CC, CN, PIS, Título de Eleitor, CTPS, Reservista... Será que não dá pro Governo simplificar a identificação de um pobre cidadão? Precisamos mesmo de tudo isso?

Que venha o guarda. Agora o tio é habilitado.

4 comentários:

JRP disse...

Achou difícil?
Vai vender ou comprar um imóvel.
Ou vender seu carro.
Ou tirar passaporte.
Ou, pior de tudo, FECHAR UMA EMPRESA!
É foda, esse país é uma merda.

Anônimo disse...

Cidadania é um direito de todos assim como o acesso aos seus documentos, na sua historia atrapalhada eu só notei uma coisa, que tipo de cidadão é este que não tem guardado os seus documentos? estou me referindo a certidão de nascimento, no seu caso a de casamento com a averbação do divorcio, este documento é o ultimo que vc pode perder!!! 1º certidão, 2º RG e por ae vai....
caramba não culpe o estado, olhe para o seu proprio nariz, imagine se não tivesse o poupa tempo, imagine.... vc iria no detran em um lado da cidade e identifica q o problema é no rg ae vc teria de ir para o outro lado da cidade... ae no ssp vc identifica q vc esta sem certidão ae vc iria procurar o cartorio sabe la onde... cara não reclame de barriga cheia! o q aconteceu com vc foi falta de sorte misturada com falta de informação um pouco de desleixo.
um abraço, sempre tente olhar por outro prisma!

Tio Xavier™ 4.5 Plus disse...

Prezado camarada anônimo:

Não reclamo do remédio, mas sim da doença que é a imensidão burocrática produzida pela casta estatal para sua própria manutenção.

O Poupatempo - apesar de boa idéia - não é mais que um adoçante para o remédio amargo. Um pobre brasileiro ter que colecionar dezenas de documentos para satisfazer aos controles estatais é bizarro.

Na era da tecnologia digital dá pra fazer isso ser mais simples. E barato. Mas aí... sabe... vai mexer na posição de alguns...

Anônimo disse...

Parabéns,

Amei a "A odisséia da cidadania"!
Além de muito bem escrita, inclusive apontando essa horrível mania que certas pessoas adquiriram de falarem tudo no gerúndio, mostrou exatamente como é o atendimento no "gasta-tempo".
Passei por isso exatamente há algumas semanas atrás quando fui renovar minha CNH. Meu RG antigo, disseram-me que não mais me identificava ...; depois, meu divórcio não tinha sido averbado...Enfim, senti-me como se
eu mesma tivesse escrito o que estava lendo!
Grande abraço
Neusa Fiesta