Não que as ações do jesuítas tenham sido tão nobres assim, mas ao menos não tinham o viés de transformar as terras brasileiras em gigantesca reserva extrativista, somente para suprir a penúria econômica pela qual a Europa passava com o declínio do modelo imperial feudalista. Havia muitos jesuítas de alma nobre embora - em última instância - servissem à Europa. Mas infelizmente a colonização cultural é tão mortífera quanto o escravagismo propriamente dito, pois não faz senão escancarar as portas para este. Me lembro de uma piada, cujo quadrinho não consigo achar na web agora.
Após calma e detalhada explicação do jesuíta sobre o pecado, o índio indaga:Claro que no cartoon é mais engraçado, mas a piada é elucidativa. O colonizador branco enviou intuitivamente todos os seus aparelhos para dominação, do arcabuz ao evangelho, da pólvora à cruz. A religião institucionalizada, substituindo a natural do silvícola, convertia-se em eficaz meio de aculturação e logo de escravização. Além das inúmeras doenças desconhecidas por aqui e, consequentemente para as quais os pajés e xamãs não tinham tratamento, pior ainda foram os costumes transferidos. Índias acostumadas com o sol e o vento sobre as mamas foram vestidas para cobrir o que passou a ser "vergonhas" e muitas morreram de tuberculose por isso. Tribos acostumadas à antropofagia ritual e gastronômica, viram-se desprovidas do modo de afirmação de sua identidade. Ainda bem que algumas resistiram. Que o diga o bispo Sardinha. Mas também, com esse nome sugestivo o cara pediu pra ser comido, não é?
- Mas padre e antes, quando eu não sabia nada disso, eu ia pro inferno?
- Não, filho. Antes de saber você era inocente; logo não pecava.
- Então por que me contou, seu desgraçado?
De certa forma, Pombal quase que fez-lhes um favor ao expulsar os jesuítas, pois propiciou a debandada de tantos quantos puderam, para os rincões de mata onde o branco mal conseguia chegar e, quando o fazia, caía nas arapucas da própria floresta e dos índios. Do contrário, seduzidos pelos cantos sacros, pela bonita organização das missões e pelo conceito de produção agrícola auto-suficiente, se as missões tivessem sido levadas a termo é provável que não teríamos resistência e as nações indígenas seriam apenas uma reles lembrança nos livros.
Mas mesmo quase dizimado o índio resistiu e incrivelmente hoje algo em torno de duas centenas de nações indígenas reivindicam para si o que deveria ser óbvio: a reserva e exclusividade de míseros quilômetros para subsistência, dentro dos oito milhões e meio de terras de Pindorama, que outrora não tinham demarcação, nem escrituras imobiliárias. As tribos não tinham o conceito de posse da terra e a reivindicação contemporânea não é senão uma adaptação aos novos tempos. Afinal foi o branco criou - para si mesmo - a documentação de propriedade, justificando a defesa desta a ferro-e-fogo, ou melhor: ferro, fogo, chumbo e sangue alheio.
Antes e depois da criação da Funai em 1967, muitas bobagens foram feitas (inclusive a própria Funai). Sem entender nada de Antropologia, geniais políticos deslocaram tribos inteiras para regiões com características topográficas, climáticas, vegetativas e de fauna totalmente distintas das de origem. Os resultados foram catastróficos: fome, conflitos com outras nações, descaracterização, mendicância e até extinção. Essa foi, por exemplo, a sina dos guaranis. Que diabos houve o deus dos brancos, que não criou os irmãos Villas-Boas e o Darcy Ribeiro antes disso? Estão vendo como ele não escreve tão certo pelas linhas da história, que continuam sempre tortas?
As quatro gestões presidenciais recentes, duas do sociólogo e duas do metalúrgico, até que cederam em questões pontuais como a da reserva Raposa Serra do Sol e sua devolução para algumas nações como macuxi, wapixana, ingarikó, taurepang e patamona. Mas esqueceram de combinar direito com os arrozeiros, pois muitos destes também foram ludibriados outrora com cessão de terras para cultivo em Roraima. Agora há também a indústria da indenização posto que há mais de dez anos os arrozeiros reivindicam "safras que estão por colher" e ressarcimento dos equipamentos, cuja logística de remoção é onerosa não compensando por si. No fundo, há dos dois lados vítimas de um Estado não planejado e sem diretrizes de longo prazo, que se pende ora para um lado, ora para outro, conforme as forças correlatas. Infelizmente pende sempre mais para o capital.
Neste ano, particularmente, as escolas tiveram um feriadão prolongado que deixou o dia do índio perdido entre o fim-de-semana e a inconfidência. Sinal dos tempos ou não, mas um mau sinal sem dúvida. Quem sabe se pior do que esquecer o índio não é passar para os estudantes uma versão caricaturizada por penachos, tanguinhas e homenagens vazias, que em nada acrescentam no respeito à etnia, à cultura e ao direito de viver dos povos indígenas, muitos dos quais já se encontram urbanizados. Quem sabe, alguém vá no centro da cidade e compre daqueles índios da diáspora algum unguento mágico, um souvenir industrializado ou então vá a algum parque e tire fotos com uma sobra do indígena, já despido de sua essência, do seu modo de ser e do pensar silvícola. A coisa tá tão perdida que em um colégio particular anos atrás vi crianças vestidas com trajes de... comanches!!! Só faltou o Clint Eastwood aparecer para praticar tiro ao alvo neles.
Minha sugestão para o dia de hoje é que tentemos repensar nossa civilização a partir de alguns valores dispersos com os três milhões de índios brasileiros que viviam aqui: 1) Que terra é pra usufruto, não para posse; 2) Que os filhos o são de todas as mães e pais para, para que não haja órfãos pedintes na rua, nem institucionalizados; 3) Que da natureza é para tirar-se somente o necessário à vida, não a acumulação; 4) Que o trabalho é um bem coletivo, de todos para todos e não de todos para meia-dúzia de capitalistas e 5) Que a escola deva ensinar aos "curumins brancos" o que lhes é importante para viver bem, para se defender e defender seus direitos. Sobretudo o direito à vida. Que não lhes empurre o dispensável e o supérfluo.
Hoje deveria ser dia do índio. Não só dos índios brasileiros, mas de todas as nações, de todos os cantos do mundo invadidos pelas cidades e indústrias. Lembremos dos aborígenes australianos; dos índios norte-americanos quase aniquilados por aplaudidos cowboys; das tribos africanas, que vivem verdadeiros desastres sociais, após a devastação e conseguinte abandono dos estados brancos; dos esquimós que disputam humilde subsistência com bilionários lobbies petrolíferos; dos povos latinos ameríndios que ainda lutam pela independência. Enfim, os quem amargam a impotência como eu, pelo menos ensinem aos descendentes o básico: respeito e reconhecimento.
Índio Gaudino, rogai por nós.
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