domingo, 19 de abril de 2009

Curumin chama Cunhatã, que eu vou contar

Desde a entrada do branco europeu nas terras de Pindorama, a questão da posse da terra e do status do índio é objeto de conflito e "muito pano pra tanga". Não obstante os massacres incontáveis que ocorreram desde a expulsão dos jesuítas, as nações indígenas brasileiras vivem como párias na própria terra de seus ancestrais.

Não que as ações do jesuítas tenham sido tão nobres assim, mas ao menos não tinham o viés de transformar as terras brasileiras em gigantesca reserva extrativista, somente para suprir a penúria econômica pela qual a Europa passava com o declínio do modelo imperial feudalista. Havia muitos jesuítas de alma nobre embora - em última instância - servissem à Europa. Mas infelizmente a colonização cultural é tão mortífera quanto o escravagismo propriamente dito, pois não faz senão escancarar as portas para este. Me lembro de uma piada, cujo quadrinho não consigo achar na web agora.
Após calma e detalhada explicação do jesuíta sobre o pecado, o índio indaga:

- Mas padre e antes, quando eu não sabia nada disso, eu ia pro inferno?

- Não, filho. Antes de saber você era inocente; logo não pecava.

- Então por que me contou, seu desgraçado?
Claro que no cartoon é mais engraçado, mas a piada é elucidativa. O colonizador branco enviou intuitivamente todos os seus aparelhos para dominação, do arcabuz ao evangelho, da pólvora à cruz. A religião institucionalizada, substituindo a natural do silvícola, convertia-se em eficaz meio de aculturação e logo de escravização. Além das inúmeras doenças desconhecidas por aqui e, consequentemente para as quais os pajés e xamãs não tinham tratamento, pior ainda foram os costumes transferidos. Índias acostumadas com o sol e o vento sobre as mamas foram vestidas para cobrir o que passou a ser "vergonhas" e muitas morreram de tuberculose por isso. Tribos acostumadas à antropofagia ritual e gastronômica, viram-se desprovidas do modo de afirmação de sua identidade. Ainda bem que algumas resistiram. Que o diga o bispo Sardinha. Mas também, com esse nome sugestivo o cara pediu pra ser comido, não é?

De certa forma, Pombal quase que fez-lhes um favor ao expulsar os jesuítas, pois propiciou a debandada de tantos quantos puderam, para os rincões de mata onde o branco mal conseguia chegar e, quando o fazia, caía nas arapucas da própria floresta e dos índios. Do contrário, seduzidos pelos cantos sacros, pela bonita organização das missões e pelo conceito de produção agrícola auto-suficiente, se as missões tivessem sido levadas a termo é provável que não teríamos resistência e as nações indígenas seriam apenas uma reles lembrança nos livros.

Mas mesmo quase dizimado o índio resistiu e incrivelmente hoje algo em torno de duas centenas de nações indígenas reivindicam para si o que deveria ser óbvio: a reserva e exclusividade de míseros quilômetros para subsistência, dentro dos oito milhões e meio de terras de Pindorama, que outrora não tinham demarcação, nem escrituras imobiliárias. As tribos não tinham o conceito de posse da terra e a reivindicação contemporânea não é senão uma adaptação aos novos tempos. Afinal foi o branco criou - para si mesmo - a documentação de propriedade, justificando a defesa desta a ferro-e-fogo, ou melhor: ferro, fogo, chumbo e sangue alheio.

Antes e depois da criação da Funai em 1967, muitas bobagens foram feitas (inclusive a própria Funai). Sem entender nada de Antropologia, geniais políticos deslocaram tribos inteiras para regiões com características topográficas, climáticas, vegetativas e de fauna totalmente distintas das de origem. Os resultados foram catastróficos: fome, conflitos com outras nações, descaracterização, mendicância e até extinção. Essa foi, por exemplo, a sina dos guaranis. Que diabos houve o deus dos brancos, que não criou os irmãos Villas-Boas e o Darcy Ribeiro antes disso? Estão vendo como ele não escreve tão certo pelas linhas da história, que continuam sempre tortas?

As quatro gestões presidenciais recentes, duas do sociólogo e duas do metalúrgico, até que cederam em questões pontuais como a da reserva Raposa Serra do Sol e sua devolução para algumas nações como macuxi, wapixana, ingarikó, taurepang e patamona. Mas esqueceram de combinar direito com os arrozeiros, pois muitos destes também foram ludibriados outrora com cessão de terras para cultivo em Roraima. Agora há também a indústria da indenização posto que há mais de dez anos os arrozeiros reivindicam "safras que estão por colher" e ressarcimento dos equipamentos, cuja logística de remoção é onerosa não compensando por si. No fundo, há dos dois lados vítimas de um Estado não planejado e sem diretrizes de longo prazo, que se pende ora para um lado, ora para outro, conforme as forças correlatas. Infelizmente pende sempre mais para o capital.

Neste ano, particularmente, as escolas tiveram um feriadão prolongado que deixou o dia do índio perdido entre o fim-de-semana e a inconfidência. Sinal dos tempos ou não, mas um mau sinal sem dúvida. Quem sabe se pior do que esquecer o índio não é passar para os estudantes uma versão caricaturizada por penachos, tanguinhas e homenagens vazias, que em nada acrescentam no respeito à etnia, à cultura e ao direito de viver dos povos indígenas, muitos dos quais já se encontram urbanizados. Quem sabe, alguém vá no centro da cidade e compre daqueles índios da diáspora algum unguento mágico, um souvenir industrializado ou então vá a algum parque e tire fotos com uma sobra do indígena, já despido de sua essência, do seu modo de ser e do pensar silvícola. A coisa tá tão perdida que em um colégio particular anos atrás vi crianças vestidas com trajes de... comanches!!! Só faltou o Clint Eastwood aparecer para praticar tiro ao alvo neles.

Minha sugestão para o dia de hoje é que tentemos repensar nossa civilização a partir de alguns valores dispersos com os três milhões de índios brasileiros que viviam aqui: 1) Que terra é pra usufruto, não para posse; 2) Que os filhos o são de todas as mães e pais para, para que não haja órfãos pedintes na rua, nem institucionalizados; 3) Que da natureza é para tirar-se somente o necessário à vida, não a acumulação; 4) Que o trabalho é um bem coletivo, de todos para todos e não de todos para meia-dúzia de capitalistas e 5) Que a escola deva ensinar aos "curumins brancos" o que lhes é importante para viver bem, para se defender e defender seus direitos. Sobretudo o direito à vida. Que não lhes empurre o dispensável e o supérfluo.

Hoje deveria ser dia do índio. Não só dos índios brasileiros, mas de todas as nações, de todos os cantos do mundo invadidos pelas cidades e indústrias. Lembremos dos aborígenes australianos; dos índios norte-americanos quase aniquilados por aplaudidos cowboys; das tribos africanas, que vivem verdadeiros desastres sociais, após a devastação e conseguinte abandono dos estados brancos; dos esquimós que disputam humilde subsistência com bilionários lobbies petrolíferos; dos povos latinos ameríndios que ainda lutam pela independência. Enfim, os quem amargam a impotência como eu, pelo menos ensinem aos descendentes o básico: respeito e reconhecimento.

Índio Gaudino, rogai por nós.

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