domingo, 5 de abril de 2009

Quebrando o silêncio

Não quis dar pormenores na ocasião a respeito da morte do Sr. Avô Xavier, que agora data de um ano. Além de o tema ser mórbido demais eu ainda estava sob efeito traumático do tratamento que é destinado aos cidadãos quando do falecimento de seus entes. Bom meu amigo, minha amiga, se você não tem bom estômago, interrompa a leitura por aqui pois isto não é pra você. Mas se quiser arriscar, vamos em frente.

Após a morte tão súbita quanto previsível dele fui eu, como único varão da restrita prole, o natural incumbido dos trâmites fúnebres. A morte ocorreu em casa sob circunstâncias rápidas, pegando de surpresa dona Avó Xavier. Chamados por esta ao final da manhã, os bombeiros do Resgate constataram a inexistência de sinais vitais. Estando o falecido caído de mau jeito no banheiro os policiais tiveram a nobreza de ajudar a vesti-lo e acomodá-lo de maneira digna na cama, já que não poderiam mais levá-lo a título de socorro. Nisso foram gentis de fato. Mas o zelo do Estado e quiçá o profissionalismo encerraram-se com esses nobres soldados Bombeiros a quem não vi mas sou grato. A seguir foi mobilizado o serviço do IML da Polícia Científica para prosseguimento.

Somente ao final da tarde - quase às dezessete horas - é que chegou o funesto veículo de condução. O motorista tinha aquela pinta estereotipada dos servidores policiais paisanas: bigodudo, barrigudo, óculos escuros à testa, camisa estampada pra fora da calça jeans surrada e tênis. Não que tenha sido indelicado, jamais, e até fez por parecer gentil. Mas considerando o conjunto da coisa o Estado realmente não tem nenhuma preocupação na lida com famílias de falecidos. O baú do carro exalava algo parecido com aqueles recolhedores de ossos dos açougues. Aberta a porta, deixou escorrer um fio d'água suja e fétida à porta da casa da viúva. O contêiner para cadáveres continha líquido provavelmente secretado por ocupantes anteriores. Não havia ajudante nem nenhum equipamento adequado para transladar o falecido até o veículo. Não tivessem sido um cobertor velho disponibilizado pela senhora e as forças do genro do falecido e deste que escreve, não sei o que o motorista haveria de fazer sozinho. Fico imaginando como não o será com os habitantes de cortiços quase inacessíveis.

Embarcado o velho Xavier, o motorista nos avisa que o legista iria embora dali a poucos minutos e a liberação legal demoraria até o dia seguinte. A não ser que ele pedisse para o legista esperar. Sem pedir previamente nossa opinião o emissário fez questão de telefonar para o IML local e só então nos inquiriu sobre o interesse de obtermos a liberação na mesma data. A conversa tinha os ares do conhecido "quebra-galho" e tanto pela suspeita enojante quanto pelo desinteresse de conduzir os trâmites às pressas dispensei a "gentileza". Disse que deviam fazer tudo de acordo com os padrões operacionais ao que o condutor se mandou, deixando o telefone e o endereço a ser visitado no dia seguinte.

Por volta de oito horas da manhã posterior, dirigi-me ao IML da região. O prédio e o ambiente não eram convidativos, obviamente. Mas somados às fisionomias dos funcionários que lembravam filmes "B" de terror, parecia que tudo visava o desconforto acima de qualquer coisa. Como se não bastasse, demoraram mais três horas, sem qualquer informação parcial, até que eu fosse chamado para fazer o que chamam de "reconhecimento" e assinasse os papéis. E é neste ponto que a putrefação toma os odores de fato.

Tive que entrar em um salão aos fundos. A cinco metros de distância já era possível saber que lá não havia senão seres em decomposição. Um misto de podre e amônia que faria arder o nariz mais insensível. As instalações do lugar são péssimas: sem refrigeração, sem ventilação, sem filtragem de ar e nada que aparente assepsia básica. Fui dono de uma casa de carnes e posso garantir que com um zelo básico - à base de cloro- o local poderia ser melhor, evitando que os reconhecedores como eu tivessem que pisar em fluídos humanos escorridos pelo chão. Também digo que para alguém reconhecer um familiar morto, não custaria nada aos cofres públicos segregá-lo momentaneamente em uma ante-sala, para que não se tivesse que ziguezaguear em outra dúzia de corpos, até chegar no de seu ente. Até então só tinha visto coisa tão deprimente em filmes. Mostrando o rosto do falecido sem cerimônia o funcionário explicou que devido à contração muscular os mortos ficam com a boca aberta, mas que eles - os funcionários - poderiam camuflar o fato com a inserção de algodão. Ignorando o que eu estava passando com a cena e a tosca abordagem, ele passou a enfiar toneladas de algodão na boca do morto, socando com uma pinça para surtir o efeito explicado. Simples assim, como quem estivesse enchendo uma almofada e ele não podia esperar eu me retirar. Tinha que fazê-lo à minha frente e faltou cantarolar, já que proseava sem a menor preocupação.

Concluído o feito, o funcionário do serviço funerário chama-me noutro canto, em uma sala interna ao putrefatório. Lá ele explica que somente um serviço básico de lavagem e vestir é feito de praxe, mas que ele entende que não fica bem assim e presta um complemento que poderia incluir cabelos, barba e até maquiagem para tirar a palidez cadavérica. Fez questão de dizer que não me cobraria nada pelo serviço mas insistiu que eu adquirisse as flores de um "conhecido", para quem telefonou de um ramal do próprio IML. Deu o preço do arranjo sem constrangimento, como é próprio dos bons homens de negócios. Abatido pela situação, mal impressionado com aquele lugar e ansioso para finalizar os arranjos, eu consenti e entreguei as roupas com as quais o morto deveria ser vestido, saindo o mais rápido que pude.

De lá rumei para outro local, este da prefeitura, para negociar a urna funerária popularmente conhecida como caixão. Dessa parte, quase que menos desagradável, saltou-me o fato de que o moderníssimo Serviço Funerário Municipal não aceita qualquer tipo de pagamento eletrônico, o que me obrigou a sair e fazer alguns saques em caixas eletrônicos próximos, para inteirar o valor do item escolhido. Eles até que aceitam cheques, mas não tenho por hábito emiti-los de minha pessoa física e era esse o único tipo aceitável.

No velório e sepultamento nada a supreender. Depois do contato inicial com a frieza e descaso estatal da casa putrefata, o resto é ficha. Mas curioso é o desespero de causa e oportunismo de funcionários fazendo serviços particulares em pleno próprio municipal e no meio do expediente. Após descerem o Sr. Xavier à sua morada definitiva e sepultarem-no, um preocupado coveiro me identificou e me chamou à parte. Proferiu comoventes palavras de conforto - algo como "infelizmente é o destino de todos nós" e "este é o nosso trabalho" - que finalizaram com a oferta de um atencioso serviço de jardinagem que eles mesmos prestam, para "dar um cuidado merecido para o falecido" - nas palavras dele -. Por módicos cinquenta reais mensais, em dinheiro e entregues somente a ele, o finado Xavier receberia um modesto jardim, que seria zelado com atenção evitando que o endereço ficasse com aspecto de desbarrancado e abandonado como outros, que o funcionário apontou no entôrno. Descrente dos reais benefícios que cuidar de mortos possa proporcionar aos próprios ou a nós, dispensei o préstimo sem explicações. Acredite que ele ainda tentou insistir, apelando para a consideração com a memória do morto e nojeiras similares. Senti vontade de socar-lhe o focinho.

Dias depois contei à viúva - somente este último episódio - dando-lhe a chance de decidir se compactuava ou então contratasse um honesto particular. Todavia ela compartilha da minha opinião, de que não é depois de mortas que as pessoas merecem nosso zelo. Há sempre os vivos para tal. Não temos sequer o hábito de visitar túmulos, mas antes visitar as pessoas em vida, para fofocar e tomar café.

E é isso meu caro. Caso você se veja diante do inevitável infortúnio de perder um familiar e seja o eleito para representar a família perante o Estado, já sabe o que enfrentará. Prepare o nariz e o estômago. Literalmente.

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