sábado, 9 de fevereiro de 2008

Roteiro gastronômico do submundo 2008-01

Subtítulo: NÃO VENDA O QUE NÃO TEM

A pior coisa que pode ocorrer a um cliente é sofrer a tentativa de ser enganado pelo fornecedor. É o mesmo que chamá-lo de trouxa na cara. Tenho uma regra de ouro, de minha autoria, que serve para qualquer ramo de atividade:
"Quando não tiver a lebre que o cliente pediu não empurre o gato.
No máximo tente convencê-lo das vantagens do gato."
Infelizmente em um tempo em que a incompetência crassa, a malandragem cresce e a filhadaputice abunda, essa regrinha tão simples é desconhecida.

Não somos obrigados a ter sempre o que o cliente pede. Mas não é porque o cliente pediu algo que ele quer esse algo. Geralmente ele quer resolver alguma questão e cabe ao vendedor captá-la. Pode ser fome, pode ser uma solução técnica, pode ser um meio de transporte, sensação de segurança, etc.. Em resumo, quando o cliente pede especificamente por alguma coisa, em noventa e nove porcento das vezes essa coisa é passível de substituição. Mas tem que ser feita de forma honesta, transparente e competente.

Eu mesmo me vejo obrigado a reespecificar os pedidos de meus clientes todos os dias. E graças à minha competência, consigo apontar valor para o que tenho a oferecer, em relação ao que o cliente havia pedido. Para isso, depois de entendida a necessidade real, eu só trato de posicionar os holofotes em cima das melhores características do que eu possuo para vender. O freqüente resultado é que consigo vender, deixo o cliente satisfeito e ele torna a me ligar para comprar novamente. Fatos sim, mentiras jamais.

Mas os proto-profissionais que atenderam a mim e à tia darling na Panificadora Marengo (vide ficha técnica no rodapé) jamais ouviram falar de tudo isso. Aliás, estabelecimento alimentício lotado quase sempre é sinônimo de mau atendimento. Não deveria. Se a demanda é maior do que a capacidade, parabéns para o empreendedor. Esse é o sonho dourado de todos. Só que daí para satisfazer bem aos que conseguiram adentrar ao recinto é bem outra coisa. Veja se não estou sendo severo demais.

Depois de amargar uns trinta minutos na fila com a darling e eu faminto, conseguimos uma mesa. Logo notei que o in da noite era o rodízio de pizzas. A fisionomia de estresse da funcionária de cabelos mesclados de cor-de-rosa e dos demais empregados não era lá muito animadora. Mas eu não tinha ido lá para admirar as funcionárias e tampouco os seus pares masculinos. Sentamo-nos. Os pratos já estavam postos e, em poucos segundos, uma funcionária aporta em nossa mesa com uma fumegante pizza:

- Brócolis com muzzarela?

- Não. Por favor, pede para alguém... - mal tive tempo e a dita saiu-se voando a servir outra mesa - .

Chega outro servente:

- Atum com cebola ou atum com catupiry, senhor?

- Nenhuma. Eu quero o cardápio.

De novo, esse se manda, nada de cardápio e encosta um terceiro de mãos vazias:

- O que vão beber?

- Eu quero o cardápio primeiro.

- Não tem bebida no cardápio.

- Você pode trazer o cardápio?

- Mas não tem bebida no cardápio.

Eu sei que podia ter dado um berro e um murro na mesa para me fazer entender. Mas sou um ser com alma nobre e apenas estou estagiando na plebe enquanto meus milhões não me chegam. Tento explicar, como cabe a um futuro pedagogo:

- Você já me disse e eu ouvi. Mas eu quero escolher lanche. Posso?

- Não vão comer pizza?

- ...

Com uma delicadeza paquidermiana a baianinha inculta e mal-remunerada puxa os pratos da mesa, sem ao menos pedir licença. Ainda que mal, tive tempo de dizer que queríamos dois refrigerantes pretos com gelo e limão. O simpático casal da mesa ao lado riu da cena insólita. Comentei com eles e a darling que quebrar rotinas robotizadas dava nisso. O povinho que trabalhava lá estava em modo piloto automático, carregado com o software "rodízio.exe". Ser do contra seria meu desafio. Mais ou menos como os Luditas faziam nas fábricas durante a revolução industrial. Pane certa. Mas eu sou brasileiro e não desisto nunca.

Alguns ajustes no modus operandi dos robozinhos e o cardápio chega em nossa mesa. Procuro escolher rápido meu lanche. Na verdade eu já sabia de antemão o tipo de coisa que queria e só usei o cardápio para escolher a versão. A darling gostou da sugestão e clonou. Melhor mesmo, porque em um ambiente lotado como aquele pedir variações seria suicídio. Dois cheese-picanhas. Segundo a descrição do cardápio algo simples como: picanha frita em tiras, com queijo derretido e salada, no meio de um pão de hambúrguer. Eu já havia comido isso lá mesmo, um ano antes. E achei que seria satisfação garantida. Ao menos foi o que pensei.

Minutos depois chegam os enormes e vaporosos lanches no prato com talheres. A servente de madeixas rosadas despenca-os rapidamente na mesa junto com um catchup. Tomo fôlego para pedir a mostarda mas ela já estava a um quilômetro. Tudo bem, esperaria outro atendente passar. Corto o primeiro pedaço, degusto e puto da vida decreto para a darling:

- Isso aqui só é picanha se for na casa da senhora mãe deles.

O casal vizinho só observa, tranqüilos que estavam com o serviço-padrão de pizzas randômicas.

- Não é? - pergunta minha companheira - .

- Nem a pau. Desde quando picanha tem nervinhos? E a aparência dessa gordura? Isto é contra-filé.

Tiro um pedaço com o garfo, destrincho no prato e mostro para a amada ironizando:

- Eu adoro pedir algo e me darem outro sem maiores explicações.

Acontece que, quando essas coisas são feitas nos estabelecimentos, os funcionários - ao menos os nascidos de profissionais do sexo - já sabem bem o que estão fazendo. A técnica é a famosa SPP: Se passar, passou. E para isso, após arremessar a entrega na mesa do cliente eles tratam de se mandar. Se possível encerram o expediente ou voltam somente quando o cliente pedir a conta. Antes de mais nada, peço para uma garçonete chamar a senhorita pink-hair. Ela chega à mesa atabalhoada com aquela cara de "fala logo que tô ocupada" e ouve a queixa do pobre freguês:

- Isto aqui não é picanha em lugar nenhum do mundo. É contra-filé.

Ela persiste e comete o pênalti. Acha de argumentar, sugerindo que me falte sanidade mental ou conhecimento:

- Impossível, porque hoje nós nem temos contra-filé.

- Querida - puxo o pedaço de carne com o garfo e mosto a ela destrinchando com os dedos - isto aqui não tem textura de picanha, não tem gosto de picanha, nem cheiro de picanha e nem gordura de picanha. Na melhor das hipóteses seria contra-filé. Mas se você diz que não têm contra-filé, aí me preocupa. Que diabo será?

Visivelmente emburrada a esguia mulher pega o meu lanche e coloca na janela do chapeiro. Conversam de forma que eu não escute, mas a darling ainda consegue ouvir. O senhor chapeiro queria reafirmar o milagre da transubstanciação bovina dizendo que não tinham contra-filé. Vão às putasqueospariram com essa insistência. Se se tratasse de pessoas leigas eu juro que perdoava. Mas esses merdas trabalham com isso o dia todo. Sabem o que receberam do fornecedor, o que cortaram e o que fritaram, mas insistem em chamar o cliente de idiota. Mais destestável impossível. A moça volta à mesa com mesmo o prato, na vã tentativa de me convencer dos poderes sobrenaturais do estabelecimento.

- Isto é picanha. Se o senhor pedir outro lanche vai vir igual. Porque não temos contra-filé. Impossível.

Que dane-se a modéstia, mas tenho um paladar de gourmê francês, olfato de cão e conheço alimentos um bocado. Mas raciocinei de forma pragmática. Eram nove e meia da noite, tínhamos ficado na fila por trinta minutos, eu não tinha almoçado e tudo nos arredores tinha filas nas portas. Então condicionei, inegociável:

- Olha jovem, não sou inimigo de contra-filé. Mas eu pago pelo gato, não pela lebre. Continem enganando aos que não conhecem carne. Vou ficar com o lanche mas jamais vou pagar isto como cheese-picanha. Tudo bem? Se vire com a especificação da conta e obrigado. Se estamos conversados, com licença que vou comer.

Não sei se resignada, aliviada, ou sei lá o quê, a ditinha ainda avisou que na hora de saírmos era para chamá-la. Entendi que era para fazer a correção da comanda. A darling, por sacanagem ou por estar com menos fome que eu, fez questão de rejeitar alguns dos pequenos pedaços que achou duros, abandonando-os mordidos no prato auxiliar. Chamei a atendente que digitou algo no micro-terminal, levantamo-nos e ao passar pelos chapeiros lancei um olhar fulminante ao time de pilantras. Estivesse eu com adereços e trajes apropriados de vodu, eles sairiam de lá direto pra se benzer. Ao pagar a conta atentei ao que era processado e vi que a magrela tinha bilhetado os lanches como "churrasco com queijo". Aqui em Sampa o têrmo define um sanduíche simplório de carne picada. Menos da metade do preço da iguaria que eu pedira e queria. Mas fome aplacada e instatisfeito com o atendimento, me mandei para casa com a querida.

Atenção senhores da Marengo: não façam mais isso. É muito feio, desonesto, ofensivo e canalha. Não tem, não tem. Um cliente satisfeito recomenda a mais dez. Um insatisfeito alerta a cem. Ou bloga, que é bem mais eficiente.

FICHA TÉCNICA:

Dia: 08/02/2008.
Hora: 21h00.
Local: bairro do Tatuapé, em Sampa.
Estabelecimento: Panificadora Marengo
Conceito: Sacanagem não se perdoa. Não merece bis.

2 comentários:

Lu Ribeiro disse...

APOIADO!!! Pior é qd a empresa é grande. Passei seis meses brigando com a Oi/Telemar por um serviço de banda larga q eles dizem estar habilitado para a minha linha telefônica, mas que na prática não funciona... seis meses depois do que pensei ter sido o término da novela com a (minha) desistência do serviço resolveram começar tudo de novo enviando uma conta?! Tõ quase apelando pro tribunal de pequenas causas, mas temo que esta opção gere mais dor-de-cabeça pois se existe um estabelecimento q está sempre cheio é o Fórum e imagino que não seja por bons serviços...

Tia Paula disse...

Morando do lado oposto da cidade, acho pouco provável que eu vá sentir fome no Tatuapé, mas caso isso aconteça, lembrarei do aviso.